sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Euforia Refinada


Inquieta e dona de um humor quase poético, Alessandra Maestrini tem os pés no chão, mas a sua arte não conhece paredes, tão pouco a trivialidade. Da dramaturgia à música, ela se movimenta com a leveza de uma bailarina e não dá para saber onde termina a cantora e começa a atriz, ou onde termina a menina do interior e começa a diva. Por VANESSA OLIVIER


Entro, às 11 da manhã, em seu quarto de hotel, e a encontro fazendo as malas para dar continuidade a sua turnê Drama'n Jazz pelo interior do Estado. Na noite anterior, tinha se apresentado, pela primeira vez, em Sorocaba, sua cidade Natal. A estreia a encheu de orgulho e alegria por poder compartilhar seus  talentos artísticos aos conterrâneos. ”A sensação é igual a de quem vai fazer formatura de universidade. Eu sinto como se fosse um prêmio poder, finalmente, me apresentar aqui. Foi muito especial", diz, com os olhos azuis cintilantes.

 Alessandra me recebe vestida de maneira informal, cabelos soltos naturalmente e sem um pingo de maquiagem no rosto. Não lembra, nem de longe, a diva da noite anterior. No palco — seu universo particular - estava em um sensual e chiquérrimo macacão, que reluzia um brilho negro devido aos infinitos cristais swaroski, cabelos presos no alto da cabeça e maquiagem impecável.

Mas apesar da simplicidade de seu visual, de quem acabou de acordar e está ajeitando, despreocupadamente, as gavetas de lingerie, no caso dela, a bagagem (sim, enquanto conversamos, Alessandra se ocupa em fazer as malas), é possível perceber a musa (e a humorista) nas palavras cuidadosamente escolhidas e articuladas, no riso fácil, solto e na força do olhar longÍguo ao buscar as mais doces lembranças, como as do avô italiano Mário, chamado carinhosamente por ela, na infância, por ”vô caecudo” (ele era careca, avisa), que retribuía o apelido a chamando de "estrupício".

 Ela conta que ganhou a alcunha durante uma visita da família ao avô, que mora na Itália. ”Todo lugar que a gente ia, como eu era a mais nova, devia ter uns 4 ou 5 anos, me deixavam escolher o que íamos comer. E eu sempre respondia: pizza. E meu avô falava: 'esse estrupício só quer pizza', aí pegou", Alessandra termina a história rindo até fazer o corpo se curvar. E depois se entristece ao se recordar de sua atual dieta: ”Agora sou uma pessoa que não come mais glúten, não posso nem comer pizza”, lamenta. ”Ah, sério? Deve ser por isso que consegue manter a boa forma”, digo. Ela ri e diz, tristonha, que fez um teste de intolerância alimentar e, segundo o resultado, tudo lhe dá alergia. "Praticamente tenho que viver de fotossíntese. Mas vou fazer outros testes pra confirmar”.

 Além da dieta restritiva, o corpo esguio de Alessandra é mantido por suas longas caminhadas, em companhia de bons amigos, já que ela não é do tipo que rala em academia, ou corre horrores para manter a barriga sequinha. "Adoro caminhar, e sempre tem um amigo desavisado que me convida para caminhar na orla, e depois que andamos bastante, ele diz: 'quando a gente vai parar de andar? Estou cansado", ela solta uma gargalhada enquanto dobra uma peça de roupa. "E quando eu pego o telefone então, quanto mais eu falo mais rápido eu ando".

 Pensando bem, gostar de caminhar faz muito sentido para ela. Estar constantemente em movimento, e para diversas direções, é uma das mais fortes características profissionais de Alessandra. Atriz, cantora, compositora e versionista, transita por diferentes faces dentro da música e da dramaturgia. Nos palcos, na telinha e na telona, vai do riso ao choro, do lírico ao jazz, do MPB ao rock. No campo da voz, a mágica brota principalmente por ela ter quatro oitavas de extensão, um fenômeno raro no canto que a permite interpretar perfeitamente estilos tão distintos.

 Mas além do seu talento natural, Alessandra convive com uma espécie de faniquito a estabilidade, algo que vira e meche a leva sob uma infinita esteira mutável, que a apavora e também a torna mais forte e mais feliz. ”Tenho medo e coragem junto, pois sem o medo a coragem não existe. Se você não tem medo, também não tem coragem. Ao mesmo tempo, não consigo ficar sem mudar, vai me dando uma agonia muito maior do que o medo de mudar. É aquela velha história de que, às vezes, não fazer é mais difícil do que fazer”. No caso dela, impossível. E se for levar para um nível astrológico, totalmente incoerente. ”É engraçado que sou taurina, e dizem que o touro é um signo muito fixo, só que eu tenho fogo no meu mapa astral. Sempre que vou fazer o mapa, o astrólogo fala: 'você é uma taurina muito atípica, você não para quieta'”, ela ri, balançando a cabeça, achando graça da própria inquietude.

 "Tenho medo e coragem junto, pois sem o medo a coragem não existe"

 

NUA EM CENA

 Desde 1997, Alessandra mantém uma relação muito íntima com os palcos, derramando, ali, aos olhos e ouvidos vigilantes da plateia, toda a sua genuína arte de interpretar. A primeira vez que se revelou ao público foi com o espetáculo As Malvadas, de Charles Mõeller e Cláudio Botelho, que recebeu o Prêmio Sharp de Melhor Musical. No currículo, guarda musicais como a superprodução Les Miserables (Os Miseráveis), Rent e o megasucesso Ópera do Malandro, ambos protagonizados por ela.

 Para Alessandra, 0 show Drama'n Jazz tem uma esfera mágica, totalmente especial, que a faz entrar em contato com suas mais densas emoções. De um modo clichê, é como ver nascer e crescer o primeiro filho. "E o meu primeiro CD, meu primeiro show solo como cantora, meu primeiro projeto pessoal, assinando produção também, em parceria com o Jorge Elali Produções. Então é muito especial", ela fala sorrindo com os olhos.

 No entanto, apesar de estar familiarizada com aquele friozinho que congela sua barriga toda vez que entra em cena, o que agora cutuca os temores dissimulados de Alessandra é outro. Estar no palco, desnudada de personagens, fazendo ecoar sua voz com suas próprias expressões e maneira de sentir a arte é o ponto central desse desafio. "É diferente, agora não tem desculpa. Não posso mais dizer que chorei naquela hora porque era o personagem, porque fazia parte do show. E uma explosão, é como estar nua, pois são os teus sentimentos ali, o teu jeito de sentir aquilo, tua delicadeza, tua fragilidade, tua força, tua feminilidade, tua virilidade".

 Mas ela sabe que por trás de tanta exposição sempre vem os louros do aprendizado. O principal deles é aquele mais transcendental: o encontro com nós mesmos. "É aprender de si mesma, porque é um contato direto com o público, não tem quarta parede, é mais corajoso, digamos assim. Pelo menos para mim, alguém que sai de um lugar para o outro. Transição é sempre uma novidade", reflete.

 

DESAFIO "CHICO”

 Certo dia, Alessandra estava ouvindo um CD de Marília Gabriela, ao lado de alguns amigos estrangeiros de sua mãe. Assim como ela, eles se encontravam totalmente embasbacados pela beleza da música brasileira. Foi ai que uma ideia iluminadora atravessou a mente inquieta de Alessandra. "Naquela hora eu pensei que era uma pena eles não estarem entendendo a poesia, porque uma das partes mais importantes da nossa música é a poesia. Aí eu decidi tentar fazer com que eles entendessem".

 Ela conhecia muito bem a complexidade do desafio que vinha pela frente, pois se traduzisse literalmente a canção, a estragaria, ou se criasse uma nova letra não estaria contando a verdadeira história. E isso era o que a estimulava, a simples ideia de que poderia encontrar a resposta para uma pergunta laboriosa. "Fiz, ficou legal, e aí fiz outra. Quando vi, já tinha feito o CD inteiro”. Mas ela queria mais. O "mais” se tornou infinitamente maior quando pensou no quão instigante seria encontrar as palavras perfeitas para as obras de um dos maiores ícones da cultura nacional, Chico Buarque. "Consegui fazer a Beatriz, assim, fácil. Ai eu falei: 'gente, eu sei fazer isso'”, comemora.

 Empolgada, Alessandra verteu para o inglês outras composições de Chico, como a Eu Te Amo, que integra as faixas de seu CD. Depois de prontas, ela enviou as letras ao compositor por email. E aí veio a maior de todas as gratificações: pela primeira vez, ele deu sua bênção a uma versão de sua música. "Ele aprovou todas. Me ligou, fez um monte de elogios, falou que todos os dias recebe email de gente querendo verter sua música e ele nunca aprova. Disse que estava muito feliz, porque fui bastante fiel à sua poesia, a sua essência”, ela vibra com a lembrança, emocionada.

 "Só o humor salva"

 O contraponto de seu talento é o que a torna ainda mais especial: se por um lado, emociona muita gente com o alcance arrepiante de seu vocal, por outro, também arranca gargalhadas por seu humor refinado. Como esquecer a hilária Bozena, do sitcom Toma lá dá cá? Neste ano, ela também viveu uma noiva

muito sinistra, que decidiu se casar com um noivo morto, em sua participação especial no seriado Pé na Cova. Ainda neste ano, também deve estrear a comédia A primeira missa, dirigida por Oscar Magrini. ”O filme é muito engraçado, nas gravações a gente morria de rir. É sobre a dificuldade de fazer filme no Brasil. Se eu sou uma índia, por aí já dá pra imaginar".

 Mas é certo que o bom humor de Alessandra ultrapassa as câmeras e não perde uma oportunidade de dar o ar de sua graça para deixar o dia dela mais leve, principalmente nos momentos mais críticos. "Uma vez, eu estava triste, chorando e, de repente, comecei a rir. Meus amigos me perguntaram do que eu estava rindo e eu disse: 'eu não consigo parar de chorar, estou achando isso hilário'”, ela mal consegue terminar a frase e o riso vem apressado e, ao mesmo tempo, deliciosamente sem pressa. ”Eu costumo dizer que só o humor salva. Então, há o que eu chamo de alegria de viver, algo que faz parte da minha essência, graças a Deus”, diz, levantando as mãos para o céu.

 

'eu não consigo parar de chorar, estou achando isso hilário'
 

Além de ser essencial em situações críticas, para ela, o senso de humor também é uma espécie de feromônio, ou seja, um tempero crucial no jogo da conquista. "O cara não precisar ser hilário, mas ele tem que entender suas piadas, você não precisa ser hilária, mas você precisa acompanhar o humor dele porque achar graça das mesmas coisas é importante. Mesmo que você não veja graça, que, pelo menos, se divirta

do fato de ele achar aquilo engraçado”. E, pelo jeito, ela vem se divertindo bastante ultimamente. Quando pergunto como está seu coração, ela diz: "Eu estou feliz, mas não vou falar mais do que isso", e ri um riso de orelha a orelha, revelando muito mais do que gostaria.

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário