HISTÓRIAS PARA PENSAR

A Saudade


Ao abrir os olhos e levá-los ao alto, avistou a borda do colchão macio e, imediatamente, suas costas reclamaram da aspereza do piso laminado. Não sabia como havia parado ali, no chão frio de seu quarto solitário. Era a terceira vez que acordava, no meio da noite, fora do aconchego de sua cama. E apesar do desconforto, não sentia nenhuma vontade de se deitar naquele espaço, hoje vazio, que um dia acalentara muitas noites de amor.  Preferiu continuar ali, estendida em meio à sua dor, que apesar de feri-la cruelmente, também oferecia um modo mordaz de preencher as lacunas da sua recente viuvez.
Lili queria apenas dormir, não era capaz de lidar com aquele sentimento corrosivo que tirava dela a alegria de viver. Estava irritada, com raiva da saudade que a flagelava todos os dias, principalmente, às noites, privada de ouvir a respiração ruidosa do marido, ou sentir os braços dele enlaçando seu corpo dormente durante cálidas madrugadas. Seu ódio por tudo aquilo era tanto que desejou, com toda força, poder esbofetear a saudade e gritar para ela os mais terríveis insultos.
Após ter adormecido embalada por pensamentos insensatos, acordou horas depois, quando as luzes da manhã já penetravam apressadas pelas frestas da janela do quarto. Lili levantou-se sem vontade, olhou demoradamente para a cama arrumada e foi despertada de seus devaneios com um som que parecia ter vindo da suíte. Descalça, andou na ponta dos pés e se postou ao lado da porta entreaberta do banheiro. Seu coração deu um salto ao ver, pelas frestas, um vulto se mexer lá dentro. Analisou o quarto a procura de algum objeto que pudesse se transformar em uma arma e sorriu quando seus olhos alcançaram o abajur de madeira maciça sob o criado mudo.
Foi buscar o objeto, pé ante pé, e depois voltou com ele ao lugar onde estava. Esperou um pouco, ao lado da porta, que o vulto saísse, mas o seu coração era como uma metralhadora viva, e ela precisava agir. Segurando o abajur com as duas mãos acima da cabeça, chutou com força a porta, escancarando-a. Subitamente, a cor sumiu de seu rosto. Pensou que iria desmaiar, mas a paralisia abrupta de seus membros não permitiu que ela movesse nem ao menos os olhos. Prendeu a respiração por um tempo acima do normal e só a soltou quando seus pulmões começaram a gritar por socorro.  – Isso é impossível! – murmurou estarrecida.
Lili não podia acreditar no que via. O seu desejo insano aflorado com tanto afinco na noite passada estava ali, à sua frente, dentro de seu banheiro. Era real, tinha agora um corpo e um rosto que Lili prontamente os reconheceu. Os olhos de Lili se encheram de lágrimas e ela chorou porque não era capaz de qualquer agressão. Ao conseguir se mexer novamente, abaixou os braços e repousou o abajur no chão. Enquanto as lágrimas dela escorriam derrotadas por sua face pálida, a saudade sorria. Lili estava chocada por descobrir que não a odiava tanto quanto imaginara.
A saudade tinha olhos meigos e um sorriso infantil. Seu rosto era sereno e estranhamente familiar. No primeiro momento, ela tinha a forma de uma criança, mas conforme o tempo passava, adquiria expressões cada vez mais adultas.
- Estou aqui agora. Faça o que desejou – falou a saudade, e o som da sua voz era indecifrável, nem agudo, nem grave. Mas era impossível para Lili esboçar qualquer reação.
- Não posso. – Lili teve vontade de abraçar a saudade, mas ainda não podia reagir.
- Eu sou as suas lágrimas, sou a sua dor.  Eu faço você sofrer todos os dias e noites. Sou eu o seu pior tormento. – A saudade continuava serena, impassível, ainda com aquele sorriso no rosto, e tinha a expressão de uma criança, embora seu corpo agora parecesse pertencer a um idoso.
Lili lembrou-se das noites que chorou, com o rosto colado no piso laminado do quarto, até o cansaço ser maior que a dor, lembrou-se de todas as manhãs que acordou sozinha na cama e ouviu o som do chuveiro ligado (ele sempre despertava antes e jamais a acordava), lembrou-se do lugar vazio na mesa do café da manhã e de todas as vezes em que ele preparou para ela deliciosas rabanadas para o desjejum. De repente, o sentimento da noite anterior voltou com mais intensidade e ela estava tomada de ódio. Proferiu os nomes mais horríveis que vieram em sua mente e, insana, avançou com as mãos fechadas em punho, prontas para golpear a saudade. Mas se deteve.
   Novamente, a saudade tinha a forma de uma criança e seus olhos emanavam tristeza e amor. Misteriosamente, o ódio de Lili deu lugar a um sentimento novo, parecido com gratidão. Ela começou a entender que não era certo odiar a saudade, percebeu que não queria feri-la, tão pouco fazê-la desaparecer. A saudade era uma dor necessária e urgente. Sem ela, haveria apenas o vazio. E nada no mundo poderia ser pior do que o vazio, pensou Lili. Finalmente, abriu os braços e acalentou a saudade. Ela era a sua eterna companheira. A dor mais feliz que poderia sentir. E suas lágrimas misturaram-se ao seu riso.  



Amanheceu
Ele não está me ouvindo. As palavras jorram de minha boca como uma avalanche de cacos, talhos de madeira, poeira e restos de comida. São os entulhos abarrotados de minha alma que estão sendo lançados para lugar nenhum. Por mais que eu grite e me esvaia em lágrimas e soluços misturados a um confuso dialeto, nada parece abalar sua intolerável autoconfiança. Do alto de sua empáfia, ele me olha impassível. A boca, às vezes, se mexe sutilmente em uma menção de quem anseia calar o próprio silêncio, mas logo os lábios finos se apertam, selando-se a frio.

Miro fundo naqueles olhos cor de caramelo queimado à procura de um vestígio de amor, algo que não me deixe na sombra de meus próprios tormentos. Sinto deslizar uma lágrima pelo canto de meu olho esquerdo e deixo que ela passeie pelo meu rosto até se perder na curva de meu pescoço. Eu já não falo mais, apenas o encaro com medo do que possam revelar seus olhos de fogo. Sem querer enxergar, penso ter visto reluzir uma sombra de piedade.

Mas nada disso está funcionando, eu me encontro perdida demais para entender os sinais, preciso de algo mais concreto. Espero, até que adormeço no aconchego solitário de meu sofá de três lugares. Na sala, apenas o silêncio de minha própria respiração.

Acordo em um sobressalto. No ambiente mal iluminado posso avistar um pequeno pedaço de papel em cima da mesa de centro. Esfrego os olhos embaralhados e estendo as mãos para alcançar o bilhete. A pouca luz atrapalha a leitura e preciso me levantar para tocar o interruptor. Sinto o corpo pesado, fraco, vitimizado pela recente sessão de quimioterapia. Quando a sala se ilumina, tenho medo de encarar o amontoado de letras no papel. Aliás, medo é meu companheiro desde o descobrimento do nódulo em meio seio esquerdo.

Procuro um assento mais próximo para repousar meu esgotamento. O assalto do retumbar de meu coração quase me deixa sem fôlego. Eu sei o que preciso fazer, mas o pavor do futuro que virá depois que eu ler o bilhete parece me paralisar. Não sei por quanto tempo fico sentada, com o papel sobre o colo, sem poder descobrir a verdade.

Mas eu preciso encarar, como fiz quando abri o envelope que trazia o resultado da biopsia sobre o tipo do tumor instalado em meu corpo. No dia em que me submeti à cirurgia para retirar um de meios seios e, com ele, toda minha feminilidade. Quando finalmente consegui olhar no espelho e ver o reflexo de meu corpo nu e dolorosamente mutilado. Ao fazer a primeira sessão de quimioterapia e sentir o mundo todo rodar. No momento em que agarrei firme o aparelho de barbear, que ele sempre esquecia sob a bancada da pia do meu banheiro, e o manuseei sobre meu próprio couro cabeludo, acabando com as evidências do que já tinha sido uma longa, farta e bela cabeleira loira.

Depois de pensar nisso tudo, finalmente meus olhos encontram a letra de forma no papel já entre meus dedos frios. Lá fora, a manhã se levanta iluminando, aos poucos, as ruas de meu bairro, e clareando as frestas da persiana que cobre a janela. Depois de ler e reler dezenas de vezes aquele bilhete, aos poucos meu coração volta ao ritmo normal. Solto o ar preso de meus pulmões e, no momento em que fecho os olhos, as lágrimas que já queimam dentro de minhas retinas caiem frescas sobre as maçãs de meu rosto. Estranhamente, não sinto dor. Aquele golpe, aparentemente cruel, não me desestabiliza como eu havia imaginado.

De repente percebo que todo aquele pânico tinha sido em vão. Apesar de difícil e dura, me espanto ao perceber que consigo absorver a realidade. Amasso o bilhete, jogo-o no lixo, enxugo o rosto e vou preparar o café da manhã. A vida continua. 



A cor do sorriso

Ela gostava de fotografar sorrisos. Eram de todas as cores, tamanho, intensidade, formato, idade. Andava com sua câmera a tira colo, e quando via alguém sorrindo, mesmo que de longe, clique no indivíduo. Alguns que percebiam ficavam sisudos, desconfiados da intenção da moça, mas acabavam ignorando o fleche disparado à contra gosto. Outros corriam em sua direção, exigindo satisfações. Tinha até aqueles que, ao perceber a imagem fisgada por uma câmera fotográfica, ajeitavam os cabelos, o decote, a camisa amassada, e caprichavam no sorriso, na pose, no olhar. Esses eram os tipos de sorrisos que Ana Laura não gostava, por não serem espontâneos e naturais. E logo, ao término dos fleches, lá iam correndo em sua direção a perguntar para qual revista seria. Ela sempre inventava uma e ficava morrendo de rir por dentro. “Que maldade”, pensava.

Era assim todo dia depois da escola. Quando chegava em casa, o tempo parava no laboratório de revelação, que ela mesma havia montado usando um pouco da sua criatividade e a ajuda de um experiente profissional. O tio era fotógrafo e a ensinou revelar filmes. Não precisava de muitos equipamentos, apenas os produtos químicos necessários e a ausência total de luz. Apesar das fotos serem reveladas em preto e branco, ela conseguia ver a cor de cada sorriso. Adorava quando encontrava os de cor cinza, pois tinham sempre algum mistério.

Certa vez, depois de uma sessão de fotos, ela se trancou em seu laboratório. Entre os sorrisos que tinha fotografado, Ana Laura se surpreendeu ao perceber que um deles não tinha cor. Estarrecida, fez novamente o procedimento e, depois de concluído, não havia sombra de dúvidas. Ela ficou olhando a fotografia pelo resto do dia tentando decifrar aquele enigma. A imagem era de uma mulher, já idosa, maltrapilha, olhar cansado. Ana Laura não entendia a ausência da cor. Já havia fotografado outras pessoas como ela e todas tinham um sorriso colorido. Alguns eram negros, a cor da revolta. Outros, cinzas, algo de muito incomum havia acontecido com o indivíduo. Também havia sorrisos azuis, que denotavam tristeza, outros, vermelhos, mostrando raiva e mágoa e, ainda, verdes, sorrisos de quem tem esperança. Quase nunca eram rosas, a cor da alegria, ou brancos, a da paz.

Encabulada com o mistério, resolveu procurar a mulher. Com a câmera dentro da bolsa, foi ao mesmo lugar onde fotografou o sorriso sem cor. A noite já caía, um friozinho eriçava os pelinhos loiros dos braços de Ana Laura. A luz fosca dos postes de iluminação dava ao lugar um ar de beco. Ana Laura havia caminhado pelo bairro todo e nem sinal do sorriso sem cor. Cansada, decidiu voltar e deixar para o dia seguinte o encontro.

Depois da aula, Ana Laura foi ao mesmo lugar procurar pela mulher. Perguntou às pessoas da rua e ninguém soube informar. Um guarda que estava passando pelo local, depois de ouvir a descrição da menina, disse contente por poder ajudar:

- Ah, sei quem é. Mas por que quer saber?
- Eu quero ajudá-la - respondeu Ana Laura.
- Sei, mas, infelizmente, não vai ser mais possível. A coitada bateu as botas ontem à tardezinha. Há essa hora já deve estar na gaveta ... - o guarda chegou mais perto da menina e cochichou: - para servir de cobaia a estudantes - Ana Laura ficou branca.
- Morreu como? De quê?

O guarda fez uma cara de quem não pode fazer nada e, erguendo os ombros, disse: - Fome. Ela estava desnutrida.
A menina agradeceu ao guarda e foi para casa almoçar. Mas perdeu o apetite e ficou pensando, com um sorriso azul, que a fome não tem cor. 



Fogão à lenha








Dona Geruja saiu correndo. Havia largando a panela sobre as chamas do velho companheiro fogão à lenha, que já acalentara em seus braços de fogo inúmeras lágrimas frias derramadas pelos olhos marejados da viúva em dias de saudade e solidão. Enquanto ela corria para fora da casinha feita de madeira e suor, limpava as mãos ressecadas cheirando a alho no avental sujo de farinha para poder abraçar a filha, que num certo dia partiu sem outro para voltar. Ela trouxe em seu abraço uma nova Carminha, com feições que nada lembravam os antigos traços adolescentes. Agora mais corpulenta, ainda com o sorriso de menina, mas olhar de mulher madura e decidida. Ao redor delas o dia era bonito, apesar do frio que enrugava as pastagens e escondia os pica-paus dentro das árvores. Carminha segurou o rosto da mãe entre suas mãos brancas e sorriu demoradamente com os olhos vertendo lágrimas de emoção.

- Mamãe, ah minha mãe!- ela disse sem se incomodar com o vento que embaraçava os lisos fios de seus cabelos soltos. Dona Geruja deixava o pranto rolar com satisfação de agora suas lágrimas serem de alegria.
- Por que demorou tanto? Meu Deus, por que? - eram as únicas palavras que saiam dos lábios ressecados de Dona Geruja, devido aos anos que correram sozinhos.
- Não importa mamãe, agora já não mais importa. Espere - Carminha se desvencilhou da mãe e foi até o táxi pagar o que devia ao motorista. Depois, pegou a bagagem pequena e voltou os olhos à mãe, parada em frente à velha porteira amarela de madeira.
- Mas, só isso? - Dona Geruja ficou confusa quando viu a única mala pequena de Carminha.
- Ah, é. Bem, vamos entrar que lá eu explico melhor - as duas deixaram a porteira para trás sem ainda deixar a saudade. Ao entrar na casa, a moça suspirou por ver que nada ali havia mudado. Avistou um retrato do pai sobre o armário de zinco e o tomou nas mãos terminando por levá-lo aos lábios num beijo demorado e sentido.
- Meu pai, ainda nem acredito - uma gota de lágrima pingou no retrato e molhou o sorriso do velho boiadeiro. Ela abraçou o retrato e fechou com força os olhos verdes. O tempo havia passado rápido demais, e não havia estradas para voltar. As escolhas de Carminha foram serpenteadas de luta, algo que entrava em atrito com o coração e a razão, acabando por vencer o segundo. O resultado foram tijolos erguidos e lacunas no peito, pois nem sempre se pode ter tudo. - Pena mãe, que pena. Eu tinha tanto a dizer a ele... - ela abraçou a mãe e deixou o retrato repousar no colo.
- Sei que sim, ele também - Dona Geruja se afastou da filha ao recordar-se da panela que a esperava.
- Agora diga filha, por que só essa malinha? - a mãe gritou lá da cozinha, enquanto mexia o feijão cremoso com uma colher de pau. Carminha já estava recostada à porta, olhando para a mãe sem conseguir buscar forças. Seus olhos verdes estavam rasos d’água e ela deixou que uma lágrima pingasse ao repousá-los no chão liso de madeira. Dona Geruja virou-se ao sentir a presença da filha e ficou confusa, com o coração apreensivo. - Que foi, o que está acontecendo? - ela levantou o queixo de Carminha já úmido das lágrimas.
- Mãe, eu ... é - as palavras se perderam no pó do percurso que ela fez sozinha, independente e indiferente à opinião de quem quer que fosse.
- Diga .... seja o que for diga logo, é melhor - a mãe sentia agulhadas de tensão nas entranhas.
- Estou grávida - as palavras saíram rápidas, carregadas de medo e alegria. Dona Geruja ficou branca, levou as mãos à boca aberta, os olhos percorreram o corpo da filha e repousaram no ventre ainda liso da gestação nos primórdios da vida.
- Grávida - ela repetiu a palavra em voz baixa como se estivesse tentando convencer a si mesma. - Meu Deus, quem ..., quem é o pai se você nem casada é? - ela parecia acordar de um sonho.
- Mãe ... mãezinha, tem muitas coisas que você não sabe. Eu ia dizer, eu ia voltar, não hoje, mas no próximo mês. A gente estava planejando tudo, se não tivesse acontecido isso ... se meu pai não tivesse ... - ela arrebentou em um pranto fraco e sentido. Segurou-se ao batente da porta chorando com a cabeça rente à superfície fria. A mãe continuava confusa, sendo castigada por uma dor aguda no peito, análoga a um câncer galopante. Não sabia se abraçava a filha ou se voltava ao fogão à lenha para terminar o almoço e se consolar em seus braços quentes que já a fizeram esquecer o rancor de tantas brigas e noites mal dormidas.
- A gente? A gente quem? - preferiu continuar ali, encarando os tapas que a vida lhe dava.
- Eu e o pai de meu filho.
- Como minha filha? Você nunca falou de namorado nenhum nas cartas.
- Eu ia dizer, no momento certo eu ia.
- Cadê ele então? Vocês vão se casar, não vão? - a mãe já estava ficando com a voz alterada.

Carminha mordeu os lábios e enxugou o rosto molhado, enquanto buscava coragem para contar à mãe o que sempre temeu. O destino havia mudado seus planos, percebeu que o medo não a poupou de um sofrimento maior e se arrependeu dos dias de omissão e segredo. Foi até a sala, com as mãos massageando o rosto, enquanto era seguida pela mãe, que esperava dela uma reposta.

Dentro do silêncio cheio da vida no campo ouviram um ronco de motor de carro se aproximando. Dona Geruja correu até a porta da casa e viu um carro estacionado em frente à porteira.

- Mãe - ela virou-se para trás ao ouvir a voz da filha. - É ele, o pai do meu filho e meu... meu marido - ela disse, sentindo pontadas no coração.
- Marido? - a mãe parecia mergulhar em um mar de ambiguidades.
- Tive medo da reação do meu pai, você sabe, ele era ra....... - a voz ficou embargada. Ela estava agora de costas para a mãe, olhando pela janela o marido que esperava um sinal para sair do carro. O silêncio na sala crescia com o medo de Carminha em encarar a indignação da mãe. Os segundos correram e assopraram em seus ouvidos que era melhor voltar para a realidade. Ela se virou e não encontrou a mãe na saleta cheirando a madeira e querosene. Confusa, voltou-se à janela e fez sinal para o marido entrar. Resolveu procurar a mãe antes que ele chegasse. Encontrou-a aos pés do fogão à lenha, mexendo a panela na qual refogava uma suculenta mandioca.
- Mãe - Dona Geruja fez de conta que não ouviu, mas espiou pelo canto dos olhos e viu a mão branca de Carminha em contraste com a negra do genro. Parou de mexer a colher de pau, duas lágrimas frias foram encontrar a brasa quente do fogão e ela sorriu, tentando esconder o choque que agora nem chocava mais assim.
- Podia ter sido diferente minha filha - ela disse. - Mas a gente nunca mais vai saber - Carminha chorava, Pedro, o marido, acariciava os cabelos da esposa e não sentia nenhum conforto. Apesar de tudo, não havia briga, apenas uma lacuna que jamais seria preenchida. Dona Geruja abraçou o genro e beijou a filha. - A mandioca tá quase pronta. Agora você precisa se alimentar melhor - ela alisou o ventre da filha e voltou para o velho e bom fogão à lenha. 
Por Vanessa Olivier


O Circo


A lona estava por vir a pique, tremendo era o entra e saiu, o corre-corre, o rufar dos animais nas jaulas, as bicicletas que colidiam com tambores, a chuva de fogos que caia incessante, os trapezistas que lutavam no ar temendo, num vacilo, encontrar o chão, o mágico que tirava pombas da cartola para ir voar sobre a cabeça da multidão, os palhaços que desferiam, às cegas, golpes com seus cajados, a domadora que fazia o chicote dançar no ar, os contorcionistas, que deitados no chão, rolavam de tanto rir. Leco estava na ponta dos pés, tentando ver o que lá dentro se passava. Mas alguém o puxou pela orelha. - Sai daqui menino. Vá-se embora.
- O que tá acontecendo moço?
- Não seja xereta, anda logo se não quiser apanhar.
O garoto saiu de cabeça baixa, chateado por ser expulso do circo. Nunca tinha visto um espetáculo circense, e aquele parecia ser curioso demais. Ouviu alguém dizer, depois de abandonar a grande lona. - Nunca vi coisa igual. Eles são um bando de malucos. Quero meu dinheiro de volta.
Era uma moça de longas tranças, olhos grandes esverdeados, saia de pregas e meias três oitavos. Ela falava com o porteiro, o timbre da voz alterado, as mãos na cintura, e as duas tranças oscilando de um lado para o outro.
- Sinto muito, mas não posso fazer isso - disse o porteiro, dando de ombros. Ele voltou os olhos no aparelho televisor branco e preto de 14 polegadas.
- Não acredito nisso! É um absurdo! Nunca mais volto pra assistir essa porcaria. – Ela tinha a testa franzida, as grossas sobrancelhas contorcidas e as robustas bochechas ruborizadas.
Não resistindo à curiosidade, Leco se aproximou da moça e a assaltou com uma porção de perguntas: 

- Por que está brava? O que aconteceu lá? Quem é maluco? Por que não gostou? – Ela e o porteiro, simultaneamente, disseram:
- Cala boca!
- Mas por que quer o dinheiro de volta?
- Sai daqui! – eles ordenaram.
O garoto saiu cansado de ser maltratado e de não conseguir descobrir o que se passava dentro da lona gigante. Ficou sentado na calçada, em frente ao circo. Pensou em várias maneiras de tentar entrar lá, sem ser visto por ninguém. Mas todas as ideias pareciam arriscadas demais. Ainda sentado, com os olhos na sarjeta, não viu quando um senhor, de idade avançada, apoiando-se em um cajado, chegou e ficou parado em frente à portaria do circo. Estava vestido com um suéter branco, cheio de felpa, e uma calça de linho azul marinho, tendo traças a comer o tecido.
- Vai querer um ingresso? - perguntou o porteiro.
- Eu queria sim. Mas, sabe, é triste ir ao circo sozinho - ele falou com sua voz trêmula, um timbre baixo de quem da vida já se cansou.
- Vai querer ou não?
O velhinho pensou um pouco, ergueu o pescoço enrugado para tentar alcançar, com a ajuda das grossas lentes dos óculos, alguém como ele, só e triste. Não viu ninguém e, desiludido, resolveu comprar o ingresso para assistir o espetáculo acompanhado da sua devota solidão.
Enquanto isso, Leco ainda estava pensando em algum modo de entrar sem que ninguém o tirasse a força pela camiseta esburacada. O porteiro viu o garoto sentado na guia, riscando o chão com um pedaço seco de galho de árvore. Olhou para trás, avistou o velhinho que andava lentamente, apoiado em seu cajado, em direção à grande lona. Pensou em chamar o senhor e dizer que lá fora há um menino louco para assistir o espetáculo. Mas, ergueu os ombros e falou para si: - Que tenho eu com isso? - depois voltou os olhos para a televisão, recolhendo-se na sua vã individualidade.
Leco ouviu uma voz conhecida. Ergueu a cabeça e girou o pescoço para todos os lados. Era a moça de longas tranças, que desabafava sua indignação para uma amiga. Elas estavam bem próximas de Leco.
- Fiquei louca da vida. Aquele porteiro idiota, nem me deu bola. Ai que ódio!
- Se eu fosse você, ia lá e pegava o dinheiro a força.
- Tá louca, e se ele chamar a polícia? Posso ser presa.
- Você é menor de idade. Ninguém pode te prender.
- Mesmo assim, seria uma vergonha para meus pais.
O garoto se aproximou das meninas e disse:
- Olá, lembra de mim?
- Ah, aquele pirralho chato da portaria!
- Não sou chato não. Sou bem legal.
- O que você quer?
- Eu posso te ajudar. - As duas se entreolharam assustadas. A moça de tranças olhou para ele e riu em tom de deboche.
- Você? Me ajudar? De que está falando?
- Sobre o dinheiro que você quer de volta. Posso ir lá e pegar pra você.
- O que? Ficou louco? Acha que eu preciso da ajuda de um moleque de rua? Dá licença! – ela deu às costas ao garoto.
- Vai ser moleza. É só você distrair o porteiro que eu passo em baixo da roleta, entro debaixo da mesa e pego o dinheiro.
A moça virou-se para ele, o olhou desconfiada, ergueu uma das grossas sobrancelhas, e pensou um pouco.
- A troco de que quer me ajudar?
- É que se eu conseguir pegar o dinheiro, aproveito para pegar um ingresso pra mim. Entendeu? Aí, você fica me esperando, e quando acabar o show eu te dou o dinheiro. - Ela olhou para a amiga e disse:
- É, não me parece má ideia. O que você acha Carol?
- Acho que pode dar certo. – Ela assentiu e disse:
- E você tem que ser bem esperto.
- Tá falando com o rei da esperteza moça.
- Então tá. Vamos lá – ordenou a menina.
As duas chegaram à portaria, Leco ficou atrás delas. A menina começou a falar alto, exigindo o dinheiro.
- Olha aqui, vou chamar a polícia. Me dá logo o dinheiro!
- Já disse que não posso. Saia daqui garota.
- O que? Tá me expulsando?
Enquanto a discussão rolava solta, Leco, agachado, passou por baixo da roleta e entrou em baixo da mesa, silenciosamente. Estava ao lado da cadeira do porteiro e, também, da gaveta na qual eram guardados os ingressos e o dinheiro. Ele a abriu, bem de vagar, com todo cuidado do mundo, sem deixar de espreitar cada movimento do porteiro, que a essa altura esbravejava.
- Eu ganho uma miséria pra ficar aqui ouvindo desaforo de uma moleca mal-educada.
- O que? De que me chamou? Repita se for homem!
- M O L E C A M A L- E D U C A D A – disse, soletrando.
A menina perdeu por completo a pouca paciência e voou para cima do porteiro. A amiga tentava segurá-la, e o porteiro começou a gritar pelo segurança, que ficava de prontidão em frente à porta da lona. Leco se apressou em pegar o ingresso e o dinheiro. O segurança correu para a portaria, agarrou a menina, que esperneava e berrava enlouquecida. O porteiro olhou para a gaveta e percebeu que estava aberta. Logo viu Leco correndo ao encontro da grande lona e gritou:
- Pare aí garoto! - Voltou-se ao segurança, que tentava acalmar a moça. - Pega ladrão! Ele roubou dinheiro.
Imediatamente, o segurança soltou a menina e saiu ventando atrás de Leco. O garoto entrou no circo, com os olhos fascinados pela chama que saia das tochas dos malabaristas. Assustou-se com o grito do bruxo, que apontando-lhe uma varinha de condão disse:
- Você, garoto, vais conhecer a fúria do bruxo. Quer tentar me enfrentar?
Todos o olharam e ele se sentiu mais um artista a vender ilusão naquela tenda de malucos. Neste momento, o segurança entrou e agarrou o garoto pelo pescoço.
- Mas o que é isso? Solte o garoto! - ordenou o bruxo, arregalando os olhos negros, dentro da cara grande, pintada de branco e preto.
- Ele é ladrão! Roubou dinheiro - disse o segurança.
- É só uma criança seu cretino. Solte-o! - gritou a mulher barbada.
Leco cravou os dentes afiados na mão do segurança que, berrando de dor, o soltou. Todos riram, achando que tudo aquilo fazia parte do espetáculo. Leco desceu correndo a arquibancada, o segurança o seguiu, pisando em mãos, pés, dando ombradas em um, tapas em outro, até que um homem se irritou e empurrou o segurança. De repente, todos da plateia resolveram imitar o gesto do sujeito e caíram de chutes, murros, tapas em cima do pobre coitado. Leco assistia a cena assustado. Os macacos berravam e pulavam dentro da jaula, o bruxo gritava para tentar acalmar a multidão, os palhaços já não riam, os trapezistas pularam na rede, as crianças choravam, as aves batiam exaustivamente as asas, e o velhinho continuava sentado, encolhido num canto, com os olhos em espanto, apavorado com a confusão.
Chamaram a polícia. Sete homens fardados entraram no circo, armados de revólver e cacetetes. Ao som de apitos, os policiais faziam o cacetete estalar nas costas da multidão para tentar conter o reboliço. Muitos foram presos, o segurança precisou ser levado às pressas para o hospital, Leco foi encaminhado a uma casa de detenção para meninos infratores e o velhinho, não resistindo à forte emoção das cenas de violência que presenciou, teve um enfarto e morreu quieto, no lugar onde estava, como sempre na companhia de sua eterna e triste solidão.






Esperança


As mãos frias seguravam o batente. A cabeça pendia para baixo. Os cabelos encaracolados e castanhos caíam pela face. Os olhos mergulhados num tormento de lágrimas viam a altura e o obscuro em frações enigmáticas de segundos. Ela estava debruçada no peitoral da sacada do oitavo andar de um prédio. Naquela tarde, o trânsito se encontrava ainda mais movimentado. Uma viatura do Corpo de Bombeiros, um carro de polícia, dezenas de jornalistas e uma porção de curiosos rondavam o prédio. “Alguém lá em cima está querendo se matar”, diziam os pedestres, motoristas, vendedores ambulantes, lojistas e o pipoqueiro. Aquela agonia já durava há quase 40 minutos. Os vizinhos da moça tentavam negociar, argumentando na esperança de  que ela desistisse de ter o corpo estirado lá em baixo.

Chegou um padre, uma médica, um escritor, um doente de câncer, um mendigo e uma criança. Todos queriam conversar com a suicida, dizendo aos policiais que iriam persuadi-la com suas experiências. Primeiro subiu o padre. Os fotógrafos, ouriçados, disparavam dezenas de fleches, os cinegrafistas disputavam o melhor ângulo, os repórteres elucidavam emoções à história, e uns cinco bobocas começaram a gritar: - Pula, pula, pula. - Imediatamente foram contidos pelos policiais. É crime incentivar o suicídio.

Camila continuava inclinada para a morte, quando ouviu a voz do padre:

- Minha filha, não faça isso. Vamos conversar. - Ela virou a cabeça para o lado esquerdo, olhou-o pelo canto dos olhos dardejantes, e esperou o argumento daquele homem de meia idade, usando uma batina preta. - Você é tão jovem, bonita, há muito ainda que viver. A vida é um presente de Deus, e só ele pode tirá-la de você. Você precisa ter fé, e entregar sua vida nas mãos do Senhor. Agora venha, me dê sua mão. - Camila continuou a olhá-lo, imóvel e muda. O padre falava, usando a velha ladainha do paraíso e inferno, do amor universal. Cansada daquelas palavras, Camila disse:
- Então me diga. Por que vale a pena viver? - O homem pigarreou.
- Porque a vida é maravilhosa - disse.
Camila virou o rosto para a rua e continuou a buscar coragem para o encontro mortal. Não queria mais ouvir o padre, nada do que dissera havia feito algum sentido para ela, e o seu mundo continuou no mais escuro e deserto túnel. O padre desceu, balançando a cabeça em sinal de desapontamento. Logo os repórteres o cercaram com gravadores e microfones. A médica subiu em seguida. Aproximou-se de Camila, que continuava inclinada no peitoral da sacada, pensando em tudo e em nada.
- Sabe, eu já salvei muitas vidas. É claro que algumas vezes, a medicina não consegue lutar contra a vontade divina, e eu acabei perdendo alguns pacientes. Vejo muitos doentes terminais lutarem com todas as forças para vencer a morte. No entanto, vejo você, jovem, sadia, querendo morrer. Isso não faz sentido. Saia daí, me de sua mão, e lute para viver. - Camila olhou-a pelo canto dos olhos e perguntou:
- Por que vale a pena viver? - A médica, desconcertada, pensou e disse, sem certeza de suas palavras:
- Porque a vida é maravilhosa.
Camila virou o rosto para a rua, e seus olhos voltaram a mergulhar no rio de águas rasas que corria para lugar nenhum. A médica percebeu que a moça não queria mais conversa e chateada assentiu a derrota. Desceu e disse ao escritor que havia chegado a sua hora. Enquanto isso, a multidão que se aglomerava em volta do prédio se multiplicava sendo necessário o pedido de reforço policial. Quando o escritor chegou ao encontro dela, se encostou no peitoral da sacada e inclinou-se. Ela ergueu a cabeça e olhou direto nos olhos dele:
- Não me venha com ladainha, apenas responda. Por que vale a pena viver?  - O escritor sorriu e buscou sua melhor inspiração:
- A vida é a mais completa e perfeita arte. Somos todos artistas expondo nossas alegrias, tristezas, frustrações e sonhos no palco da vida. Por isso, temos que concluir o show com glória, deixar o palco entre aplausos e não abandonar o público em meio ao espetáculo, interrompendo a arte que ainda há muito a crescer. - Camila suspirou entediada e disse:
- Você não respondeu minha pergunta. Por que vale a pena viver? - Ela tinha os olhos lacrimejantes. Ele, por sua vez, se assustou ao perceber que as palavras, tão íntimas, pareciam distantes, quase desconhecidas.

- Ora, por que? Porque a vida é maravilhosa - foi sua única inspiração.
Camila balançou a cabeça e voltou a olhar o trânsito. O escritor percebeu que suas palavras não eram suficientes para devolver àquela criatura a vontade de viver. Desceu arrasado, empurrando os jornalistas. Os policiais fizeram sinal para o cancerígeno subir. O rapaz esquálido, que cobria a careca com uma boina de cor cinza e vestia um casaco felpudo, entrou em passos lentos no prédio. Minutos depois estava ao lado de Camila, que inclinava cada vez mais o corpo para a morte.
- Olá, me chamo Vagner, tenho 27 anos e sofro de leucemia. Faço tratamento intensivo há três anos. Já fui operado, melhorei, fiquei tão feliz como se tivesse nascido outra vez. Mas um dia me senti mal e fui novamente internado. Os médicos disseram que meu organismo rejeitou a medula nova, e estou novamente fazendo quimioterapia. As sessões são terríveis, às vezes acho que não vou aguentar. Mas, ao mesmo tempo, uma força grandiosa não me deixa entregar os pontos, e estou lutando para viver. Quisera eu ser como você, ter a sua saúde.
Camila olhou para o rapaz, e não sentiu um pingo de pena. Ele tinha o corpo doente, mas ela padecia de outro mal ainda mais terrível: a doença da alma. Com uma pitada de expectativa, fez a velha pergunta:
- Diga-me Vagner, por que quer tanto viver? Por que vale a pena viver? - O rapaz sorriu, levantou uma de suas mãos brancas e trêmulas, tocou de leve, com os dedos finos, os cabelos encaracolados dela e disse, já cansado de repetir a mesma frase para si mesmo:
- Porque a vida é maravilhosa. - Camila sorriu, voltou à última paisagem que veria antes de encontrar o fim. E ficou com a cabeça inclinada para baixo, os cabelos caindo sobre o rosto angular. Triste, o rapaz resolveu descer e chamar o mendigo, que, por sua vez, era um homem de 45 anos, moreno, alto, magro, cabelos emaranhados, barba espichada, vestes rotas, olhar melancólico. Os policiais ficaram em dúvida se o deixariam subir e um deles resolveu acompanhá-lo.
O mendigo se aproximou de Camila, o guarda ficou parado na porta da sacada. - Oh moça. Que é isso? Por que se matar? Olhe, você só vai fazer a vontade da turma lá de baixo, dos caras com microfone e câmera que estão doidos para ver o seu corpinho estirado lá em baixo. Vamos descer, tomar uma cervejinha, tá um dia lindo! - Camila ergueu-se, virou-se para o mendigo, sentiu uma pontada de esperança, achou que ele teria algo a acrescentar em sua desgraçada existência. Perguntou ansiosa, com o peito ofegante:
- Por que você ainda quer viver se o mundo lhe deu as costas? - O mendigo riu como um bobo, esfregou a barba fedorenta, e disse se achando o rei da sabedoria:
- Sabe moça, eu tenho mesmo todos os motivos pra querer morrer. Mas eu encontrei outra maneira de viver. Minha vida, quando eu ainda tinha um teto, era uma desgraceira só. Mas eu vivo agora livre, não tenho nada pra me preocupar, faço o que eu quero. - Ainda não convencida, aflita, ansiosa, com os olhos grandes no mendigo, Camila perguntou:
- Por que vale a pena viver?, me diga, por favor! - O homem olhou para o guarda, logo voltou os olhos melancólicos para a moça.
- Ora, pois, a vida é maravilhosa.
O mundo caiu, as pessoas sumiram, o dia virou noite e a morte assoprou fria nos ouvidos de Camila. Ela voltou-se ao peitoral da sacada, inclinou-se em posição de quem decidiu entregar o corpo à debilidade fatal. Aquele mendigo era a sua última esperança, e nada mais agora importava. A morte era necessária e a vida era maravilhosa. Mas só maravilhosa não bastava. Ela estava decidida, e o trânsito lá em baixo se transformou em um mar de águas límpidas, que a convidava a um mergulho sem volta. 
O mendigo desceu, os jornalistas queriam subir, os policiais tentavam impedi-los, e um tumulto começou. Uma menina de 8 anos seria a próxima pessoa autorizada pelos policiais à subir. Mas a polícia resolveu não deixar mais ninguém entrar no edifício. A menina pediu para a mãe deixá-la ir. A mãe hesitou, ela insistiu, e a mulher acabou por consentir. A criança correu para o prédio, dois guardas tentaram segurá-la, e ela conseguiu fugir pelo vão das pernas deles.
A porta do apartamento estava aberta, e ela foi direto para a sacada. Encontrou Camila, em pé, em cima do peitoral, pronta para o grande salto. Imediatamente subiu e ficou em pé, ao lado de Camila, se equilibrando sem olhar para baixo, pois tinha medo de altura.
- Que está fazendo menina? Desça daí! – Camila se apavorou.
- Que vai acontecer se eu cair? - perguntou a criança.
- Ora essa, você vai morrer sua boba.
- E por que você quer morrer?
Camila não sabia o que fazer. Estava prestes a entregar a vida, pois o mundo não fazia mais sentido e, portanto, não deveria se preocupar com a criança.
- Sai daqui - ordenou.
- Se você pular, eu pulo. Acho que vai ser legal. Tá vendo, os bombeiros vão segurar a gente com aquela rede.
- Estou calculando um ângulo que eles não terão tempo de me buscar. E desça já daí.
- Eu não vou descer.
- Você quer morrer é?
- Por que não? Se você quer, é porque não deve ser ruim.
Camila já estava farta daquela conversa. Pulou para o lado de dentro, agarrou a menina pela cintura e levou-a para o quarto.
- Você desistiu? - perguntou a criança.
- Não. Vou voltar, e se você for atrás de mim, pulo na hora.
- Então eu vou atrás de você.
- Mas que droga, não ouviu o que eu disse?
- Ouvi. Se você pular rápido, não vai conseguir enganar os bombeiros.
- É verdade. Tenho que pensar em outra maneira de me matar.
- Ah, já sei. Você pega uma faca e enfia na barriga. Eu já vi isso na TV. - Camila começou a rir, dando-se conta do que estava ocorrendo. Uma criança muito esperta estava lhe ensinando como deveria se matar. Minutos antes, um padre, uma médica, um doente e um mendigo garantiam que a vida é maravilhosa e imploravam para que ela desistisse da morte.
- Diga-me menina, por que acha que vale a pena viver? - Camila resolveu dar uma última oportunidade para a vida, e ouvir uma criatura pura, que não trazia as contaminações do mundo de misérias que ela conhecia. A criança sorriu, um sorriso puro de infância, e disse convicta de suas palavras:
- Porque a vida é maravilhosa.
- Só por isso? – Camila estava decepcionada.
- É. Agora você responde minha pergunta. Por que vale a pena morrer?
- A morte também é maravilhosa - Camila disse, sem forças.
- Se a vida e a morte são maravilhosas, então quer dizer que não tem diferença. Mas um dia você vai morrer, quando ficar velhinha. Aí você vai pro céu e aproveitar sua morte. Mas se você morrer agora, vai ficar sem aproveitar a vida. Então primeiro você aproveita bastante a vida até ficar velhinha. Aí depois você morre, e vai ter muito tempo pra aproveitar a morte - a criança sorriu, orgulhosa do próprio discurso.
- Vamos descer menina. Sua mãe te espera lá embaixo – disse Camila, piscando um olho à criança que a olhava radiante, com os dentinhos de leite a sorrir, e os olhos azuis a brilhar de uma alegria infantil.



Por Vanessa Olivier        



A Descoberta 


Estou caminhando pelas ruas de uma cidade estranha. Deixei meu carro estacionado a duas esquinas de onde estou. Paro em frente a um bar. Não sei se entro, têm muitas pessoas lá dentro. A música alta, o som de várias vozes, gargalhadas e talheres não me seduzem. Porém, resolvo entrar, em silêncio, os olhos passeando por todo o ambiente. Percebo, também, que há muitos olhos nos meus, mas não me intimido. Procuro uma mesa vazia, encontro uma no canto, ideal para o momento. Logo que me acomodo na cadeira acolchoada, um garçom me oferece um copo de chope. Peço-o para me trazer um Martini com muito gelo.

Olho para as pessoas, mas nenhum rosto me é conhecido. Um rapaz alto e moreno claro anima o lugar com sua voz doce e com os acordes acolhedores de seu violão. A música me distrai, me faz esquecer um pouco da vida. Tenho os olhos grudados no músico enquanto saboreio meu Martini. Ele, por sua vez, entusiasmado com meu interesse, sorri para mim e se esforça para aprimorar seus cânticos.
Acho que seria até mais fácil para o proprietário do bar colocar CDs, dispensando os serviços do músico. Parece que ninguém se importa e o talento do moço fica somente no fundo dos acontecimentos. Ninguém, no dia seguinte, se lembrará das canções tocadas por ele. A sua arte é invisível aos olhos dos fregueses. Tenho certeza de que isso no fundo o entristece. A grande satisfação de todo músico é esperar vitorioso aos aplausos calorosos da plateia no término de cada música. No caso dele, a espera era inútil, visto que os aplausos nunca vinham. O público se esquecia, pois nem sequer lembrava-se de que ele estava ali, se esforçando para dar vida ao ambiente, trazendo para fora suas emoções e as vibrações ardorosas dos acordes musicais.
Terminou a canção, seus ouvidos já têm aplausos para esperar, e ele o faz com os olhos no chão. Seu gesto é humilde, uma forma que encontrou para não me cobrar pela distração que havia me proporcionado. É claro que retribuo com o mais belo som para seus ouvidos: aplauso. Ele ergue os olhos, encontrando os meus, e me agradece com um sorriso e um leve aceno com a cabeça.
Percebo que algumas pessoas estão me olhando, talvez estranhando meu gesto. Não me importo, ergo os ombros e sorrio por dentro. Começo a me lembrar dos recentes pensamentos. Aquilo me perturba. A música já não me distrai mais. Nem o músico me importa. Novamente se tornou invisível para a plateia perdendo sua única espectadora. Sei que está percebendo, mas isso não me incomoda. Estou imersa naquela bola de neve que virou meus sentimentos.
Peço para o garçom mais um Martini. Noto o olhar de um estranho, e já posso ver, pelo canto dos olhos, ele se aproximar. Pergunta-me se pode se sentar ao meu lado. Digo que sim, pois não sou dona da cadeira. Ele ri, achando graça na minha resposta. Começa a me fazer perguntas para tentar uma conversa. Respondo sem vontade, pois, no momento, meu espírito procura a solidão. Ele percebe minha falta de interesse, mas, mesmo assim, tenta ser gentil. Olho para o músico, ele já não canta mais com tanta vontade e, no entanto, tem os olhos na minha direção. Sinto minha garganta trancar implorando por ar puro. Não ouço o que meu interlocutor está dizendo. Tenho os olhos fixos em um sapato cinza de salto alto, porém, na verdade não o vejo. Não é mais um simples sapato calçando um pé de mulher e, sim, todos os meus conflitos e aborrecimentos. Já não posso mais fugir de meus problemas, eles me perseguem até num bar de uma cidade desconhecida, na forma de um sapato feminino.
O estranho finalmente percebe o meu estado e se retira arrependido da iniciativa. Peço a conta ao garçom. Preciso deixar o bar, a cidade. Na verdade, sinto vontade de deixar tudo, e ser como o vento, livre, sem preocupação. Se é feliz não sei, mas o vento pode estar em todos os lugares que ninguém o impedirá. Sabe que é preciso correr pelo mundo, soprar as areias dos desertos, dos litorais, ventar os mares, as árvores, os cabelos, enfim, é a única coisa que sabe. Mas, antes de me levantar, olho novamente para o músico e vejo que seus olhos voltaram a se perder nas cordas de seu violão, ou talvez, elas eram milhares de palmas se encontrando, formando para ele o mais belo espetáculo.         
Sinto pena e, ao mesmo tempo, admiração por aquele desconhecido artista. Mesmo sem ter a atenção almejada, ele canta com paixão, deixando-se fluir por meio dos cálidos acordes de seu instrumento. A música sustenta seu corpo e seu espírito, porém, talvez se chateie por não conseguir atingir a plena satisfação.  Mas parece não se importar e não deixar o vazio entrar em sua vida.
Ele olha para mim, novamente sorri, mas um sorriso diferente, pois a canção é romântica. Decido me levantar, ainda com os olhos no músico que parece preocupado com minha ação. Saio do bar, ganho novamente as ruas e caminho sem pressa. Sinto um vento leve beijar meu rosto e assoprar meus cabelos. Tento pensar em coisas boas, e me lembro de meu cachorro. Tento visualizá-lo e ouvir seu ladrar, mas os derradeiros acontecimentos me veem a mente. Uma dor aguda pressiona meu peito. Logo meus olhos se enchem de lágrimas.
Agora estou sentada em um banco de uma praça, debaixo de uma lua nova, embriagada por uma luz prateada. Encontro-me muito triste, incapaz de enxergar a beleza da vida. Na verdade, estou fugindo de mim mesma. Sinto vergonha de ter tristeza e solidão. Olho para o céu, banhado de infinitas estrelas. Percebo que o mundo é muito mais amplo, muito maior do que um local de trabalho, estudo e lazer. Vejo que meus conflitos são pequenos demais para uma alma tão grande, criada por Ele. Rio um riso frouxo, próprio de um ser sem ilusões. Não tenho coragem de voltar ao meu mundo, pois ele já perdeu o sentido.
Ainda estou sentada, perdida em meus sentimentos tolos, com lágrimas pela face, quando ouço uma voz. Olho para trás, sem disfarçar os olhos de dor, e encontro outros olhos, porém, repletos de ternura. Um sorriso brando é capaz de serenar, por um segundo, minha aflição. É o músico.
Sem uma palavra, senta-se ao meu lado. Tira o violão da capa e começa a dedilhar uma canção. Com os olhos em mim, cantarola versos de Vinícius de Moraes. Sinto uma sensação diferente, até então desconhecida. Enxugo as lágrimas sem me dar conta de que o pranto cessou. Uma sensação de paz me invade violentamente. De repente, sem poder me conter, estou cantando também. O moço sorri, e começa a tocar com mais intensidade aquele bendito instrumento.
Os minutos passam, e nós nem notamos. Já perdi a conta das canções que cantamos, só sei que foram muitas. Estamos cansados e resolvemos parar. Estou muito feliz, em paz comigo mesma. Não fujo mais de mim, e nem estou absorta de meus problemas. Apenas ficaram em segundo plano. Talvez, num cantinho de minha mente.
Olho para ele que, ao meu lado, está em silêncio. Acho que está esperando que eu diga alguma coisa. Mas não sinto vontade de dizer nada. Só estou apreciando o silêncio que se torna esplêndido quando a alma está leve. Ficaria ali, para sempre, olhando a lua, sem pensar em mais nada. Todavia algo me impulsiona a dizer uma palavra:
- Obrigada. - Ele olha para mim, com olhos cheios de satisfação e pergunta:
- Pelo quê? - Sei que sabe a resposta, mas, mesmo assim, digo:
- Por me mostrar que a vida é feita de momentos, e que eles podem ser tão bons, ainda que muito simples. - Ele sorri, balança a cabeça e diz:
- A felicidade está dentro de cada um de nós. Por mais difíceis e tristes que sejam alguns momentos, ela sempre está presente. - Não entendo suas palavras e pergunto:
- Como a tristeza e alegria podem estar juntas? - Ele novamente sorri, olha para o céu e responde, sem tirar os olhos do alto:
- Por mais infelizes que estejamos, Ele sempre vai estar dentro de nós. Quando conseguimos, mesmo infelizes sentir a felicidade, é porque deixamos Ele se manifestar. E esta é a maior de todas as dádivas. - Fico em silêncio, acho que compreendi suas palavras. No entanto, sei que não conseguirei deixar Ele se manifestar sempre.  
O rapaz se levanta e diz que precisa ir. Ainda sorrindo, se despede. Vejo-o sumir pela imensidão das ruas. Resolvo ir embora também. Voltar para minha realidade, para meus problemas, que agora não parecem ter mais tanta importância. Acho que aprendi com ele algumas lições. Volto para meu carro me sentindo uma pessoa forte, com uma alma crescida. No caminho de casa me lembro das palavras do músico. Estranho, nem ao menos sei o nome dele. Penso no acaso, será que foi coisa do destino? Rio, pois me veio uma ideia à cabeça. “Talvez aquele músico seja um anjo enviado por Deus para me mostrar algo que eu não conhecia”. Não sabia que eu poderia fazer com que Ele se manifestasse em mim. Aquilo foi uma descoberta incrível.
Chego em casa, guardo meu carro na garagem. Estou exausta, mas feliz. Sei que descobri o outro sentido da vida, ou melhor, o verdadeiro. Não consigo pensar em mais nada e adormeço como uma criança.   





O amor no ódio

Estavam os dez, um ao lado do outro. Esperavam impacientes para receber a missão escolhida pelo Senhor. Eram querubins, cheios de energia, ansiedade e um pouco de temor. Enquanto a ordem não vinha, tentavam imaginar quais os tipos de mortais que iriam amparar. E ainda que não soubessem, já podiam sentir um imenso amor.
Era chegada a hora. Um por um foi conhecendo seu humano escolhido e se emocionando. No fim da escolha, todos estavam contentes, exceto um deles. Quando o Senhor se retirou, um murmúrio de vozes e risinhos encheu o ambiente de alegria. Porém, entre as vozes eufóricas e jubilosas, soou triste a voz de Ireléu.
Assustados, todos o olharam. O pequeno querubim, de olhos grandes e expressivos, cabelos encaracolados e dentes salientes, desabafou. Triste, não compreendia os motivos do Senhor ao lhe dar o pior dos humanos para que protegesse. Sentiu-se inferior em relação aos outros querubins, os quais ganharam mortais de alma boa. Todos festejavam ao descobrir que foram contemplados com crianças de rua, idosos solitários, mulheres desprezadas e homens injustiçados, que pareciam tão carentes e necessitados de ajuda. E, no entanto, a maçã podre ficou para Ireléu, “isso não é justo”, pensava ele.
Seu escolhido era um homem cruel, que matava, furtava, humilhava, maltratava, enganava seus irmãos, e ainda cometia o pior dos pecados: não crer em Deus. Revoltado, Ireléu tentou recorrer com o Senhor que, atencioso, não dizia nada. Quando o querubim terminou de expressar o que estava sentindo, relatando toda sua incompreensão e desilusão, o Senhor sorriu e disse:
- Todos são meus filhos. Agora vá, e cumpra tua missão. - Arrependido pela tentativa e lamentando sua falta de sorte, Ireléu obedeceu.
Os querubins se despediam e desejavam boa sorte uns aos outros. Antes de ir, Ireléu olhou demoradamente para seus colegas e, desconsolado, baixou os olhos, envergonhado de si. Um deles, percebendo seu desgosto, foi ter com ele. Rafael, como se chamava o querubim, acariciou os cabelos encaracolados de Ireléu e disse, com ternura nos olhos:
- Devias estar feliz. Com o tempo irás perceber o presente que ganhaste. - O pequeno querubim ergueu os grandes olhos e disse, sem compreender as palavras de Rafael.
- Diz isso porque ganhaste uma criança de rua, triste, faminta e carente para proteger. Pois eu, ao contrário de ti, ganhei uma alma perdida, a qual não deveria merecer piedade, pois é cruel e descrente. Nunca poderei sentir amor por tal criatura. - Rafael deu um beijo em sua testa e o desejou boa sorte.
O sol ardia altivo no alto do céu, clareando e abrasando a terra quente. O cheiro de leite fresco, capim molhado e esterco, o ruído de máquinas de fabricar queijo, mugido de bovinos e cacarejar de galinhas enriqueciam todo o cenário e anunciavam o inesgotável trabalho no campo. O querubim estava fascinado com o que via. A natureza dava vivas de alegria, as árvores respiravam felizes com seus frutos maduros e saudáveis, os rios desciam livremente com suas águas translúcidas e o vento caminhava sem pressa, com uma agradável sensação de liberdade. Tudo era paz e harmonia.
Sentado em uma poltrona, impregnando-se de um charuto caro e fedorento, estava o mortal. Era um homem de 56 anos, braços fortes, cabelos e bigode grisalhos, uma saliência protuberante no abdômen, pele escura pelo sol e olhos firmes. Usava botas e cinto de couro de jacaré, camisa de manga curta e calça jeans. Ireléu reparou que o homem possuía uma enorme cicatriz no braço direito. Analisou seus olhos e não conseguiu descobrir o que diziam. Eram olhos silenciosos, os quais camuflavam os segredos da alma. Seria difícil conhecê-lo profundamente, lamentou o querubim.
      Coronel Batista, assim chamava o protegido de Ireléu. Possuía um verdadeiro império de produção de leite e queijo. Toda a riqueza que conseguiu acumular em sua vida, não havia sido por meios legais. E tudo que conseguiu atrair foi ódio, medo e dor. Tinha uma enorme e inigualável capacidade de causar o sofrimento alheio. Já havia mandado executar milhares de sem terras que invadiram suas propriedades abandonadas à procura de abrigo e comida para tentar sobreviver em um mundo de desigualdades. Havia torturado e humilhado inúmeros empregados, prejudicado muitas famílias, e praguejado diversos mendigos. Usava as mulheres como objeto fungível, ria dos miseráveis e blasfemava contra Deus. Era um homem sem piedade e amor à vida. Todos que o conheciam diziam que ele tinha o corpo fechado. Foram muitos os que tentaram acabar com sua vida, sem nenhum êxito. Era protegido por seus guardas, mas, sobretudo, acreditavam que era guardado por forças superiores e ocultas. Por fim, quem conhecia sua fama jamais se arriscaria a se intervir em seu caminho. O seu poder esmagava qualquer criatura que tornasse um fardo ou uma ameaça para ele.     
Depois desta longa análise, Ireléu não sabia como deveria agir. “De quê devo protegê-lo e como?”, perguntava-se confuso. Antes de tudo, se lembrou que precisava sentir amor pelo seu escolhido. O grande amor que lhe daria os poderes para enfrentar tudo e todos. Porém, não compreendia a missão que o Senhor o delegou. Como a todos os outros querubins, deveria ele proteger alguém carente, fraco, injustiçado, enfim, vítima das maldades dos humanos. Mas o coronel não parecia fraco, injustiçado, nem carente e, muito menos, vítima da crueldade humana.     
Ainda era um querubim e essa era a primeira missão que recebia. Precisava vencê-la para se tornar serafim. Mas ainda era muito jovem, ingênuo e não conhecia a verdade. Precisava aprender e era aquela missão que o ensinaria os mistérios da vida. Porém, não a compreendia e achava-se incapaz de sentir amor por tal homem desumano. Chorou lágrimas celestiais.
O tempo passava e durante todos os dias Ireléu via seu protegido cometer crueldades e injustiças, sem poder fazer nada, pois não conseguia amá-lo. Mas, em um certo dia, cansado e quase derrotado, sem poder mais conviver com tanta dor, teve um segundo de lucidez. Lembrou-se que o Senhor mandou proteger o coronel, porém, não conseguiu ver nada que o ameaçasse. Aí, então, o querubim pensou: “O Senhor ordenou que eu o protegesse, mas não disse de quê. Como não encontrei alguém ou algo que o ameaçasse, a única ameaça é ele mesmo. Preciso protegê-lo dele mesmo. Mas como farei isso?”, perguntava Ireléu ao Senhor, com os olhos no firmamento. Sem nenhuma resposta, o querubim passou o dia refletindo. Mas ele sabia que antes de tudo deveria amá-lo. Haveria de encontrar uma ponta de humanidade no coração do coronel. Precisava aprender a ler seus olhos, talvez, revelassem algo de bom escondido em sua alma, por medo ou vergonha.
Os dias se passavam, o tempo para cumprir sua missão estava se esgotando e ele nem ao menos conseguia amar seu protegido. O desespero e a vergonha atingiam o pobre querubim. Iria fracassar, como poderia olhar nos olhos do Senhor?, pensava ele.  
Porém, num momento percebeu o quanto havia sido tolo e ingênuo. Ele chorou, e seu pranto foi capaz de lavar sua vergonha e sua tristeza. Percebeu que o coronel era só. Rico, poderoso, mas um pobre solitário. Nenhuma mulher era capaz de amá-lo, pois dele sentiam medo, ódio e nojo. Havia tido um filho, que se perdeu pelo mundo. Também havia sido apaixonado por uma mulher, que o traiu, e acabou sendo morta por ele. E sentido dor, que o levou a cometer seu primeiro homicídio. Havia chorado, sofrido e a dor devorado de vez a única ponta de amor que trazia no coração. Por fim, o coronel deveria ser infeliz. 
De repente, o querubim começou a sentir pena de seu protegido e olhá-lo com olhos brandos. Ireléu começou a analisar atentamente o homem diante de si, sentado em sua poltrona, fumando vagarosamente um charuto, seu único companheiro. A noite era imensa. A fazenda era ainda mais bela iluminada por aquela lua divina, que quase era capaz de cegar os olhos de quem a apreciava. O silêncio na imensa sala do coronel caia pesado e triste. E seus olhos tinham um brilho oculto, misturando dor e alegria. Olhava às suas terras e à sua riqueza com orgulho. Porém, via sua solidão com dor e vergonha. Talvez, raiva de si e arrependimento. Ódio da sua incapacidade de amar.
Ireléu se assustou. Finalmente viu que nos olhos do coronel havia vergonha. Um sentimento camuflado a todos e até mesmo a ele durante o dia, mas que com o cair da noite, quando o silêncio reina absoluto, quase chega a sufocá-lo. Sabia que era uma criatura infeliz, e que apesar de todo seu poder e riqueza, não dispunha daquilo que tantas pessoas, as quais mesmo sem ter fortuna e poder como o seu, tinham: Amor. Elas amavam e ele as odiava e, simultaneamente, as invejava. Sabia que poderia ter tudo o que quisesse porque tinha poder. Mas não o amor, simplesmente por ter vergonha. O seu orgulho o dominava e perante aos olhos dos outros queria parecer um homem frio e cruel, com tal poder que faria o amor se sentir fraco e humilhado. Mas, na verdade, ele era o fraco, pois era incapaz de se permitir a amar. E isso o fazia sofrer e ter raiva do mundo. 
Só agora o querubim descobriu que havia ganhado o mesmo tipo de mortal que os outros para proteger. Entendeu que seu escolhido era fraco, carente e vítima das maldades humanas, porque antes de tudo era filho de Deus e sentia dor e vergonha. Queria amar, mas era fraco para vencer o seu orgulho. Solitário, carecia de afeto. E, como se não bastasse, fazia-se vítima de sua própria crueldade, a maldade humana. Ireléu sorriu e começou a sentir um profundo e infinito amor por aquele mortal. Amava-o com tanta intensidade, que o Senhor acabou por lhe dar os poderes para protegê-lo. E, sendo assim, venceu o primeiro obstáculo de sua missão que, sem dúvida alguma, a mais difícil. “Agora será fácil, pois eu o amo”, pensou, satisfeito.
Nos próximos e últimos dias de sua missão, se dedicou em proteger o coronel dele mesmo. Aos poucos, utilizando situações comuns, fez seu protegido enxergar que a vida sem amor é como uma imensa fazenda, mas sem ninguém para preservá-la, cuidar dos animais, fabricar os queijos, fazê-la progredir e acreditar que está viva, perdendo, assim, o sentido do existir. Ireléu aprendeu e ensinou ao seu protegido a verdade. Venceu sua missão e se lembrou das palavras do querubim Rafael: “Com o tempo irás perceber o presente que ganhastes”. Agora ele sabia e agradecia ao Senhor pela missão que havia ganhado. Venceu o mais difícil dos obstáculos. Encontrou o amor no ódio, e entendeu que todos são filhos de Deus. 

Por Vanessa Olivier






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