Como o nome já diz, Além das Grades mostra a vida que há por trás e muito além das grades de uma cadeia feminina do interior paulista. É um livro-reportagem que retrata o universo de mulheres presidiárias da Cadeia Pública de Capela do Alto, cidade do interior do Estado de São Paulo. Esta obra convida o leitor a mergulhar na alma de cinco detentas, e conhecer análises sociológicas/psicológicas das casas de detenções brasileiras, além de um retrato das condições de vivência dos detentos dentro das prisões. Ainda tem a intenção de lançar um olhar particular sobre os olhos da sociedade perante ex-presidiários.
Com toda certeza, foi um dos trabalhos que mais tive prazer em realizar e que ampliou muito minha visão sobre as questões de desigualdades sociais tão gritantes no nosso país. Este livro se encontra em forma de e-book no site da Amazon.
https://www.amazon.com.br/Al%C3%A9m-das-Grades-mergulho-detentas-ebook/dp/B00WANG7BG/ref=sr_1_4?ie=UTF8&qid=1463594816&sr=8-4&keywords=al%C3%A9m+das+gradesAbaixo, segue uma pequena amostra do livro - o Prólogo - que traz um pouco da sua essência:
DOIS MUNDOS DENTRO DE UM SÓ
10 de maio de 2003. 15h50. Chego a Capela do Alto para o meu primeiro dia de entrevista com as detentas. No caminho, vejo pessoas caminhando pelas ruas da cidade e um pensamento me vem à mente. Elas são livres e podem ir onde bem desejarem. Mas também há a possibilidade de serem prisioneiras de outros tipos de grades, já que existem muitas outras maneiras de prisão.
Não, necessariamente, é preciso estar atrás de uma cela, impedido de ir e vir, para se sentir lesado em seu livre arbítrio. Ser prisioneiro não significa apenas estar submetido a permanecer em um reduzido espaço físico, por um tempo determinado. Há celas mais cruéis que podem nos condenar a prisão perpétua. É a cela do medo, do ódio, da miséria, do rancor, da ganância, do remorso, da perversidade. Invisíveis a olhos nus, paralisam nossos pensamentos, sonhos, fé, alegria, esperança.
Nos tempos atuais, na era da globalização e do capitalismo, ficou muito mais fácil alguém ser condenado à prisão não física. Existe toda uma estrutura de marketing para encarcerar um indivíduo. Vivemos enjaulados em um mundo magnata, comandado por aqueles que detêm o poder. Nossos olhos vêem apenas o que é permitido. Somos monopolizados e manipulados pelas mãos de uma sociedade gananciosa. Logo nos vemos presos a etiquetas, luxos extremamente supérfluos, mas que nos levam a adquiri-los como se fossem um passaporte para a felicidade.
A liberdade é mera ilusão. A publicidade nos induz a acreditar que somos livres para adquirir este ou aquele bem. Mas, a armadilha está pronta e, desatentos (ou fingindo estar), somos pegos de surpresa. Existe também o falso mito da liberdade de imprensa. Somos enganados e temos que fingir acreditar no que vemos. E, muitas vezes, acreditamos, simplesmente por não encontrar outra saída.
Talvez, as detentas que irei visitar possam também ser prisioneiras de outras celas. Sinto um frio na barriga, pois temo não conseguir atravessar as grades invisíveis da vida de cada uma. Dentro de alguns minutos estarei com elas. Algumas delas, jovens como eu, e com a vida interrompida. Muitas são mães, algumas há pouco tempo deram a luz e estão privadas de viver os primeiros momentos da vida do próprio filho. Em outros braços, a criança é embalada. Outras mãos dão banho, acariciam e trocam as fraldas. Outra mulher é chamada de mãe no lugar.
Quando chego, procuro pela carcereira Evani, que me acompanha ao local das celas. Ouço música, gargalhadas, alegria. Um grupo de religiosos e um conjunto de forró estão com as detentas. Quatro dias da semana são reservados para os cultos religiosos. Voluntários de diversas igrejas vão pregar a palavra de Deus e levar um pouco de conforto àquelas mulheres. O grupo de forró está lá por uma ocasião especial. No dia seguinte será Dia das Mães. Em todas as datas comemorativas acontece uma festa. No dia de São João, a cadeia ganha cores pelas diversas bandeirinhas espalhadas pelo local. Há muita dança, comida, bebida, cantoria e visita.
O espaço, onde ficam as celas, é divido em dois pátios por uma grade de ferro. De um lado, ficam os religiosos, os carcereiros, os visitantes, enfim, as pessoas “aparentemente” livres. Do outro, estão as presidiárias. No centro, fica um pátio a céu aberto, que mede 80 metros quadrados. Mesas e cadeiras brancas de plástico, roupas, cobertores, lençóis, estendidos em varais, compõe o ambiente onde elas tomam sol.
Do lado esquerdo, há uma cela com 40 metros de extensão. Do lado direito, outra, também com a mesma medida. E dentro de cada uma, um estreito banheiro de 10 metros. Em cada xadrez, há também três beliches de concreto. As mais velhas dormem nas camas, também chamadas por elas de “jega” ou “pedra”. As outras, em colchões, apelidados de “praia”. Nos banheiros, o vaso sanitário, chamado de “boi”, é fixo no chão e não tem acento. Dentro deles, há uma pia, um chuveiro e um espelho pendurado na parede.
Nas celas, pequenos detalhes, porém, fundamentais, evidenciam rastros de feminilidade. Toalhas de crochê ornamentam mesas, lençóis floridos e de estampa alegre improvisam cortinas, que elas chamam de “queto”. Pentes, maquiagens, espelhos, porta-retratos com fotos dos filhos não faltam.
Apesar do pequeno espaço, há uma curiosa organização. Tudo fica em seu devido lugar. Utensílios domésticos são pendurados, um ao lado do outro e, alguns, guardados em prateleiras. Cobertores, lençóis, fronhas e roupas são, devidamente, dobradas. Produtos básicos como pão, leite, pó de café, açúcar, entre outros, repousam dentro de sacos plásticos, simetricamente, enfileirados. Malas, sapatos e chinelos dormem em baixo das camas.
A cadeia tem capacidade para abrigar 14 pessoas, sete para cada cela. Mas, geralmente, mais de 30 mulheres dividem os dois xadrezes. Há dias em que a carceragem chega a comportar 57 mulheres. Nessas ocasiões, chegam a dormir no pátio mais de 11 detentas.
No espaço onde ficam as pessoas, aparentemente, livres, há uma mesa e cadeira de madeira, uma pequena geladeira, diversos mantimentos como refrigerantes, papéis higiênicos, produtos de limpeza, pó de café, açúcar, óleo, tudo dentro de caixas que são guardadas em três estantes. Os outros pacotes ficam no chão, juntos à parede. Algumas presas têm a sua própria caixa, onde guardam os alimentos que são levados pela família ou comprados por elas. No final do pátio, fica o alojamento do carcereiro de plantão. A sala da carceragem é a porta de entrada para o pátio da cadeia. A área administrativa mede 120 metros.
Quando entro, vejo que muitas estão animadas, dançando juntas, rindo, comendo e bebendo. Sinto uma nuvem de nicotina no ar comprimir meus pulmões, e logo vejo bocas cuspindo fumaças brancas. Depois de boas tragadas percebo que os olhos delas se levantam ao céu e repousam no vazio. Elas parecem encontrar no cigarro uma aparente liberdade. Todas parecem alegres, alheias à realidade. Ou talvez estejam cientes de que na vida nem sempre é possível fazer escolhas.
Assim que notam a minha presença percebo uma curiosidade nua me volver olhares. Retribuo-os e vejo ali idades variadas. São jovens e idosas, juntas nos infortúnios da vida. Os religiosos pedem silêncio. Um discurso versando sobre o amor entre as pessoas é longamente proferido. As detentas ouvem, atentamente, o que é dito. Palavras como esperança, fé, amor ao próximo e solidariedade parecem ganhar proporções maiores dentro da cadeia. Muitas balançam a cabeça, concordando com as palavras dos religiosos. Mas, a impressão é de que elas não só querem mostrar aos palestrantes que compartilham a mesma visão, como, também, dizer a elas, mesma, que a esperança é a maior de todas as virtudes e que a vida não precisar ter apenas uma face.
Querem dizer a si que as coisas podem ser diferentes, e que é preciso acreditar para conseguir percorrer outros caminhos. Após o discurso, os músicos começam a tocar cantigas do Dia das Mães. A música preenche o lugar e faz ganhar novos tons nos olhos daquelas mulheres. As expressões de esperança são, subitamente, adulteradas por sentimentos que trazem dor e, ao mesmo tempo, ternura. O momento é de melancolia.
Algumas mexem os lábios, timidamente, acompanhando a melodia. Uma parte delas tem sorriso nos olhos, outra, solidão. As lembranças parecem ressurgir de refúgios isolados, dentro do coração. Há carinho nas vozes magras que acanhadas cantam com os músicos. Há, ainda, saudade.
Percebo que também tem mãos escondendo prantos reprimidos. Algumas mulheres trazem olhos afundados em lágrimas obstinadas. As lembranças dos filhos ou da mãe, que já se foi, ganham formas. A saudade tem presença e já é quase como um ser humano, com corpo e espírito.
A carcereira me segreda nos ouvidos que, em todos os anos, na mesma data, as reações são as mesmas depois que são tocadas canções do Dia das Mães. A alegria extravagante, embalada pelo forró, esmorece quando o amor materno e filial é cantado. Elas contemplam, isoladamente, a saudade que cada uma carrega dentro do peito.
Mas a visita já está por acabar. Está na hora de rezar a oração que Ele nos ensinou. As presas, os músicos, as religiosas, a carcereira e eu nos damos as mãos, formando uma corrente uníssona. Agora, as grades de ferro não podem separar as pessoas deste lugar. Neste momento, entendo que existem outras coisas além das nossas preocupações diárias. As diferenças, antes gritantes entre nós, são dissipadas. Somos todos iguais, filhos de uma mesma força. Unidos em nome do amor universal.
Mas não digo isso para fazer com que o chavão “somos todos iguais” continue a ser mastigado por bocas levianas. Essas palavras agora soam diferentes dentro de mim. De repente, percebo que o termo “igualdade” vai muito além das nossas sôfregas demagogias. E, rapidamente, me vejo embebida de toda a beleza humana. Maravilhei-me por ver tanta diversidade e, ao mesmo tempo, tanta igualdade dentro de uma pequena aresta do mundo. Tudo isso ali, ao meu redor.
Porém, ao deixar o lugar e ouvir as portas se fecharem atrás de mim, senti que tudo aquilo ficaria para trás e que eu voltaria ao meu mundo, onde o céu sobre minha cabeça é imenso, impossível fazer meus olhos alcançarem-no todo. Voltaria a ver pessoas livres caminharem pelas ruas com grades invisíveis a olhos nus, o mau humor escondido atrás dos sorrisos de comerciantes gentis, o preconceito velado em amistosos apertos de mão, a publicidade nos enredar com suas artimanhas ocultas, a corrupção calada entre os discursos políticos, tudo o que não se vê, o que, aparentemente, é civilizado e correto, o que é normal.
Dentro da cadeia tudo é explicito. Ninguém precisa fingir ser alguém que não é. Lágrimas não precisam ser contidas para provar que a felicidade existe. Palavras não precisam morrer na boca por uma questão de bom senso. As pessoas sabem que lá é preciso se comportar. Mas não esperam uma das outras um bom comportamento. Elas sabem que dentro de uma cadeia tudo pode acontecer. Os sentimentos mais cruéis de um ser humano podem ser exalados, assim, como, também, os mais nobres.
Ninguém duvida de ninguém, não precisa fingir ser forte quando as grades fragilizam o espírito, não há necessidade de dissimular superioridade, pois o barco é o mesmo para toda a tripulação, e nem testar que nunca pecou, porque a cadeia é abrigo para potenciais criminosos.
Mas, a verdade é que voltarei ao meu mundo e a vida seguirá seu curso. As diversidades não se apagarão, pois como diz o velho clichê “as coisas são assim”. Por momentos que, para nós, às vezes, parecem eternos, nos sentimos parte das pessoas e parceiros dessa verdadeira intrincada batalha que é o viver.
Dentro de nós uma luz pode piscar porque somos seres humanos. Porém, depois, um estalo faz nossa mente despertar e nos chamar para a realidade. Saímos do paraíso e voltamos ao mundo real, este que nossos olhos podem ver quando estão abertos. Tudo volta a ser palpável e nós nos sentimos bem, porque já conhecemos as coisas, estamos acostumados e conformados com as barbaridades que ocorrem ao nosso redor.
Eu vou embora e tudo volta ao seu devido lugar. Apenas um pensamento fica: como seria a vida daquelas detentas, se as coisas fossem diferentes? Se tivessem tido o privilégio de ter nascido em um lar estruturado, será que estariam lá?
Nenhum comentário:
Postar um comentário