HISTÓRIAS PARA SE EMOCIONAR

Cajueiro japonês


Na ponta dos pés dava para alcançar os frutinhos maduros da árvore Hovenia Dulcis, conhecida como uva japonesa, uva-do-japão ou cajueiro japonês, que desciam garbosos dos galhos escuros. O sabor suculento e adocicado em demasia dos pedúnculos carnosos – parte comestível da fruta com formato cilíndrico, de cor avermelhada a marrom - era extremamente bom para Ítalo, que aprendeu a conhecer os frutos mais assíduos de cada estação, e também a se embrenhar em pomares alheios para afanar, junto com os colegas, mexericas, caquis, amoras e até tomates.

O vento cortante da noite de outono fazia seus dedos se arrocharem, e a blusa fina, salpicada de uma mistura feita de algo como terra, areia, graxa e buracos generosos rompendo do tecido frágil, se enrugava em seu corpo pequeno e esguio. O frio fazia eriçar os pelinhos dos braços dele e tremer as perninhas magras, porém fortes. Mas Ítalo não se importava, estava interessado em apanhar a maior quantidade de frutinhas que podia, ora colocando na boca faminta, ora na blusa (ele havia puxado a barra até a altura do seu umbigo, formando uma espécie de bolsa improvisada). 


_ Ítalo, vem logo!, chamou o pai, que impaciente e cansado de tanto andar pelos bairros a procura de papelão, garrafas pet e de vidro, e objetos descartados para depois vendê-los à cooperativas de materiais recicláveis da cidade, já não encontrava paciência para lidar com os caprichos do filho. _ Larga essas porcaria. Larga que tem feijão em casa.
_ Calma pai!
_ Calma nada, vou pegar você pelas oreia, gritou o pai irritado.

O menino se apressou em alcançar as frutinhas em lugares mais altos da frondosa árvore, muito utilizada na arborização urbana, e em maiores quantidades em áreas degradadas devido a sua abundância frutífera. Com um pulo certeiro conseguiu arrancar o fruto mais alongado, de um marrom quase castanho e polpa mais suculenta. Ele nunca tinha visto uvas-do-japão tão grandes e doces, e estava encantado com sua tremenda sorte em topar com aquela árvore de copas abertas e folhas verde brilhantes. O pai largou as hastes do carrinho, que usava para carregar o material, formando uma pilha imensa de objetos, sendo preciso força e equilíbrio para empurrá-lo pelas ruas da cidade, sem derrubar uma sequer folha de papelão. Correu até o filho desobediente e puxou-o pelo bracinho fino, fazendo escorregar todas as frutinhas da sua blusa para o asfalto frio. Aflito, o menino quis se agachar para salvar as uvinhas, mas o pai impaciente o arrastou com força até o carrinho. __ Já disse pra largar isso. Agora vai empurrar sozinho. E cuidado pra não derrubar nada.

As frutinhas, que agora estavam espalhadas pelo chão da calçada, iriam garantir a sobremesa de Ítalo e de seus irmãos, que também adoravam uva japonesa. Ele estava até pensando em misturá-las entre o feijão só para saber que gosto teria. Também imaginou que poderia inventar algo mais saboroso, usando o açúcar que a mãe guardava para o café da manhã. Depois do jantar, iria colocá-las em uma panela, acrescentar uma colher ou mais de açúcar, levá-las ao fogo, e mexer com a colher de pau até amolecê-las e ganhar uma espécie de pasta ou grude de uva japonesa. Ele iria surpreender a todos e deixar a mãe orgulhosa, pensava.

Mas agora Ítalo estava empurrando o carrinho pesado, com cuidado para não balançar muito, sem os frutinhos do cajueiro japonês. Ele abaixava a cabeça para que o pai não visse as lágrimas lhe escorrendo grossas pelo rosto. Uma vez, o pai lhe disse que homem de verdade não chorava, enquanto ele, envergonhado, tentava enxugar as lágrimas teimosas dos olhos, que vieram abundantes depois que um pedaço de caco de vidro infiltrou-se na planta de seu pé esquerdo, abrindo uma assustadora vala de sangue e dor. 

A força que fazia para levar o carrinho não era nada comparada ao imenso vazio que agora o habitava. Ele nem sequer percebia o peso do fardo -engolido pela dor de ver suas frutinhas se perderem pela rua vazia - e o caminho de volta para casa arrastou-se triste, frio e sem ilusões. No dia seguinte, com sorte, talvez conseguisse colher novos frutos, que dificilmente seriam tão especiais como aqueles, e talvez ainda fizesse o sonhado doce de uva japonesa. E quem sabe deixaria a todos orgulhosos, inclusive ao pai, que intolerante e impaciente, seguia pela vida mais cansado do que feliz. 




Madeira Velha
Os degraus a percorrer eram similares ao seu sofrimento. A escada rangia a cada pisadela, como fazia o seu coração. A madeira chorava fagulhas que iam se perdendo pelas frestas do assoalho. E pensar que havia milhares de fagulhas de existências perdidas no labirinto que se tornou sua alma. Já não conseguia mais se achar. Sua vida havia se desencontrado por entre muitas vidas que ele talvez imaginasse ter. Mas não era verdade. Aquela era a única, e a realidade mostrava uma face dura e não menos melancólica do que a escada pela qual ele subia. E não era uma ascensão de fato. Apenas um atalho para a sua desgraça. 

Ele tentava silenciar os passos, mas era inútil. Impossível calar uma madeira velha, cansada das pisadas ao longo da vida. Suas pernas não conseguiam encontrar apoio. O tremor percorria pelo corpo, as mãos gélidas suavam medo, o coração cansado avisava o infortúnio, e os olhos... traziam contraditórias emoções. Dúvida, certeza, temor, anseio, amor e ódio.

Chegou ao topo e uma porta ganhou o ambiente. A fechadura convidou-o a espreitar o que por trás dela se passava. Agachou-se numa altura suficiente para mirar os olhos naquela janela para o desconhecido ou será que não? Será que a cena a qual iria testemunhar já havia se desenhado inúmeras vezes em sua mente atroz? O suor de suas mãos dizia que não, o pulsar de seu coração rogava que não, mas a débil certeza de seus sentidos acusava a verdade. Sim, ele já sabia, mas seus olhos desavisados queriam ver.

Era tudo escuridão. Uma ridícula escuridão. Assim como sua alma que não encontrava luz para enxergar a verdade. Alguém, sabiamente, havia vendado o orifício da fechadura. E a venda continuava em seu coração, que não sabia qual direção seguir. Agora o seu pulsar já estava na altura da boca. Uma corrente de ar frio o gelou por dentro. Não teve dúvidas. A maçaneta começou a girar. Eram seus dedos confusos que jamais conseguiram agarrar algo. E tudo se transformava em grãos de areia a escorrer pelas mãos e misturar-se ao vento. Um vendaval. Assim era sua vida.

A porta estava trancada, como sempre estiveram seus passos. Não conseguiam desvencilhar-se de seus próprios sapatos. O tombo era inevitável. Um garoto que sempre tropeçava nos cadarços desamarrados. O pulso tremeu e de repente ele se tornou forte. Girava com força a maçaneta, a raiva crescendo por saber que não conseguiria entrar. Mas não percebia que sempre esteve fora.

A força morreu segundos depois. As lágrimas chegavam para banhar o rosto de covardia. O grito ficou preso na garganta, assim como sua coragem. O corpo deslizou-se pela porta e encontrou o chão. Em posição fetal, ele chorava, baixinho, na altura da sua garra. Deixou-se assim, por minutos infindos, lamentando sua falta de sorte, desejando ser outro, mas se perdendo novamente dentro de si. Levantou-se, desceu os degraus rangentes, a madeira agora parecia uivar. As fagulhas eram espessas, e caiam com mais intensidade. Seus passos tinham o dobro do peso. Era sua covardia.

Suspirou. Olhou para cima, para a escada e para dentro de si. Novamente não se achou. Sabia o que deveria fazer, mas preferiu o silêncio. Foi embora ... mais uma vez. 



Na Contra-mão
Eles não estavam querendo conversa. O mais velho buscava em vão no azul do céu algum sinal, só não se sabia de quê. Flávio saiu ressabiado, ainda expiando por cima dos ombros, um olhar meio de esquina, aquele que não quer ser percebido, mas tem esperança de alcançar algo. Dobrou a quadra, temeroso de que alguém o visse caminhando na contra-mão de seus valores, sem lenço, documento e razão. Pensou em voltar, quem sabe os irmãos ainda poderiam mudar de ideia, antes que ele se afundasse de vez na lama do degredo. Mas era tarde, sua vida agora valia não mais do que alguns centavos, e o serviço sujo tinha hora para terminar.

O caminho parecia demasiado pequeno. Tentou encurtar os passos para ganhar tempo e pensar no que fazer. Suas mãos estavam frias, apesar do calor de quase quarenta graus. O frio vinha de sua alma, já que ele não mais sabia se ainda a tinha. De longe viu Dalila, brincando com as tranças de aplique, um sorriso maroto e, ao mesmo tempo, ingênuo, olhos de quem já conheceu a face mais podre de todo o submundo, mas que ainda acredita que a vida pode ter um tom rosa, da cor do vestido que ressalta suas curvas fortes de macho-fêmea.

Ela percebeu que Flávio a olhava, mas toda sua sensibilidade de alma feminina não poderia ser capaz de adivinhar o que se escondia naquele olhar. Retribuiu-o sem ao menos saber que feição teria seus olhos cor de avelã, sustentando longos cílios negros postiços, e um tom de azul ofuscante nas pálpebras. Mas Flávio desviou o olhar e sentiu um suor fino pingar de sua fronte. Dalila deu de ombros, e voltou a atenção aos companheiros que vislumbravam nela um prazer o qual ainda poderia satisfazê-los na mediocridade de uma vida sem valias.

Ele subiu a rampa de solo batido, sentindo que o fim da linha se aproximava. Acendeu um baseado para consumir suas entranhas e calar o nervosismo que já atingia seus órgãos vitais. Esperou recostado à parede suja, cheirando a fumo pesado de quem já se aventurou por espaços ilusórios, encontrando o céu e o inferno e acabando num chão frio, leito dos covardes e de quem não tem mais nada. Lembrou-se do tempo em que acreditava poder levar a vida, sem perceber que a vida o levava, nem sempre para onde queria ir. Acabou perdendo de vez a direção, e sem oferecer resistência, chegou ao mais baixo degrau de sua escala.

Flávio continuava aspirando e respirando a fumaça de poluentes compulsivamente, até que sentiu os lábios dormentes e o coração cavalgar num ritmo mais lento, no compasso de sua força, aquela consciente. Ouviu passos arrastados, mas não atinou os sentidos para o que estava por vir. Sua força inconsciente tentava reagir, mas defrontava-se com o medo, algo tão forte que ganha corpo e corrompe mais do que o dinheiro. Sentiu uma mão pesada segurar firme seu ombro esquerdo e percebeu que precisava reagir, o mais rápido possível.

- Desembucha - disse o brutamonte de nariz grande e olhos pequenos, que mal se percebe que estão abertos, no ávido desejo de saber quem havia dedurado seu plano de fuga para poder pedir a cabeça do “alcaguete” traidor.

Flávio apagou o cigarro na parede e não ousou desencostar dela, pois sentia as pernas frágeis como uma pena solta ao vento. Lembrou-se da promessa dos irmãos, da lâmina que riscaria sua garganta no escuro de uma cela fria, do sorriso de Dalila que poderia até apaziguar os horrores da enorme jaula, do dia em que foi pego com 50 quilos de maconha, das lágrimas de sua mãe, da promessa que havia feito ao pai falecido, que teve a vida a prêmio por um grupo de “alcaguetes”, da noite confusa na qual quase não se via nada, a não ser homens fardados desferindo golpes de cacetetes contra um grupo feroz de pessoas condenadas na vida e na morte após uma tentativa frustrada de fuga, e voltou o olhar ao gigante de olhos quase invisíveis, que já demonstrava falta de paciência.

- Como é que é malandro? Foi o traveco ou não? - falou o brutamonte, expelindo salivas ao pronunciar as palavras com um timbre grave, quase igual ao ronco de um estômago faminto.

E, novamente, a ameaça dos irmãos “alcaguetes” gritou nos ouvidos de Flávio, o olhar despreocupado e inofensivo de Dalila, com suas tranças de aplique, invadiu suas retinas, assim como a noite confusa que começou na enfermaria quando um grupo de presidiários chegou escoltado para receber cuidados médicos, entre eles, os irmãos e Dalila. Flávio, auxiliar de enfermagem e detento do presídio “Vale das Pedras”, surpreendeu uma conversa entre os irmãos e um tira, na qual um plano de fuga estava sendo dedurado, em troca de pequenos favores. E já sabendo que a bomba poderia estourar na sua mão, tentou fazer-se de rogado, mas foi logo descoberto e incumbido da missão de acusar alguém que incomodava, simplesmente porque tinha alegria e não devia nada a ninguém.

- Nunca vou ser cagueta - a frase saiu sem querer, pois Flávio repetiu em pensamento explicito o que havia prometido ao pai morto a tiros nos becos do submundo.
- Como é que é? - os olhinhos do brutamonte se arregalaram tanto que até deu para ver a cor que tinham.
- Não ... é, espere - Flávio perdeu o ar, e imaginou o gosto do sangue escorrendo por sua garganta e a vida o levando para onde sempre temeu. O medo criava celas imensas que afugentavam sua força inconsciente e o único valor que se orgulhava de ter em sua vida de misérias. Para ele, entregar alguém era terrível e pior era acusar um inocente, ainda mais Dalila, que não se furtava de distribuir sorrisos mesmo sendo os seus dias de pura dor e solidão. Se falasse a verdade, ou se fizesse de surdo e mudo morreria de uma vez só, mas se mentisse, a morte poderia vir lentamente, todos os dias um pouco, até que a última gota de vida se esvaísse de sua vil carcaça.

E sem pensar mais em nada, a resposta veio suada, carregada de uma vida, um ser humano todo, tudo o que ainda restava a Flávio e que seus caminhos torpes lutavam para roubá-lo e levá-lo ao lugar no qual nunca quis estar: no lamaçal de seus valores.

- Não foi - a voz saiu rasgada, como uma tosse de cachorro louco.
- Então quem foi? - desta vez, inúmeras partículas de saliva saíram junto com a voz de ronco de estômago do gigante de olhinhos minúsculos e foram encontrar o rosto pávido do ajudante de enfermagem.
- Não sou cagueta - disse Flávio, sentindo as pernas úmidas com a urina que escorria incontrolavelmente por dentro da calça jeans, mas, que, contrariamente, demonstrava uma incrível coragem diante de um mundo de brutamontes covardes e de quem da vida já não tem mais nada.


Folha em Branco
O lugar estava escuro. A luz da lua que entrava através de uma telha quebrada era a única fonte de luz. Cristine podia ver apenas vultos. Estava agachada, escondida em meio a uma pilha de pneus. As vozes eram estridentes. Havia ódio e medo nelas. Ofensas eram trocadas por dois homens. Um deles, armado com uma faca. Mas Cristine não podia entender direito o que diziam. Em um dado momento, seus olhos esgazeados ficaram sombrios. Os gritos de dor feriam seus ouvidos. E ela pode ver o sangue, quando as luzes dos faróis de um carro tornaram a cena real. 

Cristine tapou os olhos e tentou fazer a mente esvaziar. Ela fazia isso sempre quando seus pais brigavam e a mão do homem feria os olhos da mulher. Ela cantava uma canção que sua mãe havia ensinado. E os horrores eram levados para longe, enterrados e compactados num cantinho de sua mente. Ficavam lá, até novamente ouvir o lamento da mulher e o sorriso estrambólico do homem. E os horrores eram libertados de seu refúgio.

Ela começou a cantar baixinho, com os olhos fechados e as mãos nos ouvidos. Mas o terror continuava ali, mergulhado em sangue, a respiração morrendo no peito, os olhos metálicos. As luzes dos faróis tinham se apagado. Os gritos se perderam no vazio da noite. O agressor havia partido.

Cristine queria partir também, mas tinha medo. A canção não estava fazendo o horror desaparecer. O lugar novamente voltou a mergulhar no breu. E, no entanto, ela ainda via o sangue e os olhos do homem nadando no vazio da morte, na dor, no medo, nas lágrimas derradeiras. Já não dava mais para suportar. Ele estava ali, a um passo da morte. O que ela poderia fazer?

Cristine resolveu olhar de perto o esfaqueado. Foi engatinhando, o soluço preso na garganta, os olhos inebriados de pavor. Quando chegou perto, a luz da lua iluminou o rosto dele. Ela abafou o grito levando as mãos na boca. Os olhos de seu pai encontraram os dela. Havia neles mais do que dor - agonia. Ele queria falar, mas o sangue sufocava suas cordas vocais. Seus olhos começaram a ficar vazios, e logo a fagulha de vida se apagou.

O pai de Cristine estava morto e ela não sabia ao certo se seria um alívio ou uma dor. Mas sabia que nunca mais precisaria cantar para afastar os gritos de sua mãe. Porém, em seus últimos minutos, ele queria dizer algo. O que seria? Ela estava confusa.

Ao ouvir o som de uma sirene foi se esconder novamente entre as pilhas de pneu. Dois policiais entraram na oficina. As luzes das lanternas que eles usavam encontraram o corpo ensanguentado de um homem no chão. Eles trocaram algumas palavras que Cristine não pode ouvir, e logo começaram a andar vasculhando a oficina. Cristine estremeceu. Rezou baixinho para que não a encontrassem, pois não queria ser testemunha daquele crime. Mas um facho de luz descobriu os cabelos castanhos e lisos dela. Um deles disse: - Me dê sua mão. Vamos sair daqui garotinha. - Sem alternativa, obedeceu.

Na delegacia aguardava pela mãe, que chegou aflita perguntando pela filha. Com a presença da mãe, ela se sentiu mais confortável, e deixou que as lágrimas saltassem de seus olhos cor de azeitona.

- Eu vou levar ela pra casa - disse a mulher ao delegado.
- O que uma garotinha de 13 anos fazia na rua, às 2h da manhã? - ele perguntou. Os olhos da mulher ficaram sombrios. Mas ela não podia responder. Na verdade, não sabia e nem tinha visto a filha sair. Fez salgadinhos até tarde. Depois, exausta, adormeceu na sala a espera do marido, que nunca vinha.

Eles moram em uma casa de quatro cômodos, em uma favela. A vida é dura. A mãe trabalha demais para conseguir o sustento do lar. Faz faxina em casas de madame. Lava, passa para fora e vende salgadinhos na praia. Tem outros quatro filhos, todos homens. Os dois mais velhos estão presos por furto e tráfico de drogas. Os outros dois são mais jovens que Cristine. O caçula tem apenas 2 anos.

O marido, ex-presidiário, não conseguia emprego. Isso o levou de volta à vida do crime. Era traficante e usuário de drogas. Devia muito dinheiro e sua morte pagou a dívida. A mulher sabia, e já havia entregado a Deus. Cuidar dos filhos era a única coisa que poderia fazer. No entanto, dois deles escaparam de suas mãos, e sua filha de 13 anos iria carregar um trauma para o resto da vida. “Mas o que ela fazia lá, no local do crime?” - pensou a mãe.

O delegado esperou resposta, e sabendo que ela não viria desistiu. - A senhora pode levar sua filha pra casa. Mas, amanhã quero que volte. Precisamos conversar. Seu marido foi assassinado de uma maneira muito violenta. Preciso que me responda algumas perguntas para que possamos pegar o autor do crime.

- Entendo - respondeu.

No dia seguinte, voltou à delegacia para prestar depoimento. Celina, a mãe de Cristine, não sabia com que tipo de pessoa seu marido andava nos últimos dias. Muito menos para onde ia. Mas tinha certeza de que estava novamente usando drogas. Havia encontrado um grama de cocaína em um saco plástico dentro de um sapato dele. Ao indagar-lo, como sempre, ele foi estúpido e covarde. O homem com quem se casou há muito tempo a deixou. No lugar dele restou uma pessoa fria, vazia e violenta. “O que havia acontecido com eles?”, ela queria uma resposta.

Ao voltar para casa encontrou Cristine debruçada na janela da sala. Tinha os olhos distantes, mergulhados no vazio. Ao ver a mãe, seu queixo começou a tremer e as lágrimas vieram abundantes. Celine a abraçou forte, e as duas ficaram assim, por um longo tempo.

- Amanhã é o enterro do seu pai. Se não quiser ir não precisa tá?

A palavra enterro soou tão pesada que a fez lembrar-se de uma cena a qual já havia enterrado entre seus rancores. Era pequena, devia ter 5 ou 6 anos de idade. Estava triste porque era Natal e seu pai estava preso. Sua mãe, seus irmãos e ela iriam passar a noite com os vizinhos. Naquele ano havia sobrado dinheiro para comprar brinquedos para as crianças. Cristine ganhou uma linda boneca, mas nada era capaz de apagar a tristeza em seu rosto. As crianças brincavam, os adultos dançavam ao som de pandeiros e violões. Ela foi para casa, sem deixar a mãe notar sua falta. Ao abrir a porta, seus olhinhos se iluminaram. Com barba branca e roupas vermelhas, um falso Papai Noel se esgueirava pela casa a procura de um esconderijo para o embrulho que trazia nas mãos. Surpreendido pela criança atrás da porta, que o espiava com fascinação nos olhos, o homem retirou a barba postiça desnudando o rosto e abriu os braços com um largo sorriso. O coração de Cristine deu um salto ao descobrir o pai, dentro das roupas pesadas de Papai Noel. Correu para os braços dele e deixou-se ficar lá por minutos intermináveis. Aquele tinha sido o melhor Natal de sua vida.

Cristine se recordou de que havia passado bons momentos com o pai. Lembrou-se de como ele tinha sido carinhoso e amigo, de que o havia amado mais do que tudo em sua vida. Mas não conseguia entender o motivo de tudo havia mudado. Seu pai se transformou em outro homem que ela não gostava. Seu pai havia morrido, mas quantos pais ela tinha? Quem morreu havia sido o homem cruel que maltratava sua mãe e carregava no cinto a arma a qual trazia a morte? Ou o homem que se transformou em Papai Noel para alegrar a filha em uma noite quente de Natal? Não sabia. Suas derradeiras palavras talvez pudessem revelar o mistério. Mas elas não chegaram a tempo e ele havia levado consigo sua verdadeira identidade. Isso a torturava mais do que a faca nas mãos do assassino rasgando o corpo de seu pai, entre gritos lancinantes e luzes de faróis.

Ela enterrou a cabeça no peito da mãe. Queria afastar os pensamentos e a imagem de seu pai cuspindo o sangue para poder falar. Na noite do crime, ela havia decidido conversar com ele. Seria uma conversa de adultos. Não suportava mais o inferno em que estava vivendo. Ele devia ter uma explicação, pensava ela. Cristine o seguiu quando ele havia saído de casa depois da meia noite. A conversa teria que ser naquela noite, nem um dia a mais nem a menos.

Ele foi para a oficina mecânica de seu companheiro de tráfico, Mané. Ela também entrou lá, mas a escuridão do lugar não permitiu que ela o encontrasse. De repente, ela ouviu gritos. A luz da lua, que entrava por uma telha quebrada, permitiu que ela visse seu pai discutindo com um homem. Assustada, resolveu se esconder para que não a descobrissem ali, assistindo tudo. Foi quando viu o homem tirar uma faca presa ao cinto e cravar no peito de seu pai, uma, duas, três, quatro ..... , dezenas de vezes. O objeto havia ganhado uma luz prateada, refletida pela luz da lua, que quase cegava os olhos de Cristine. Um carro chegou. Era o Mané. Ele gritou para o agressor, “Vamos sair fora antes que pinte sujeira”, e partiram cantando pneu.

Quando se aproximou de seu pai, a vida já começava a deixar aquele corpo. Ele tinha algo a dizer, mas suas últimas palavras partiram com ele, por toda eternidade. Ela carregaria para sempre aquele mistério. Nunca poderia saber quem havia morrido. Não poderia descobrir se dentro daquele homem frio havia o pai carinhoso, vestido de Papai Noel. Ou se o monstro do tráfico tinha devorado seu pai, para sempre.

O velório foi rápido. Durante o enterro, os olhos vermelhos de Cristine acompanharam o ato em silêncio. No lugar da dor, uma saudade gritava. E a dúvida que eternamente nortearia seu coração.

Voltaram para o morro em silêncio. Durante o sepultamento, Celine havia se lembrado do homem que um dia amou. Para onde teria ido?, perguntava-se. Mas ela já sabia que a vida do crime traz a morte cedo, fria e cruel. Que apaga a existência como uma borracha ao eliminar rabiscos de grafite, sem deixar marcas nem deixar rastros, apenas um vazio, como uma folha em branco. 
Por Vanessa Olivier
A promessaO trem seguia sem pressa pela ferrovia que cortava uma boa parte da mata ciliar. A paisagem enchia os olhos de beleza, a mente de conforto e o coração de alegria. Olhar pela janela da Maria Fumaça era restaurador para as diversas etnias dentro dos vagões, mas para Daiane havia sempre uma pitada de ansiedade, ou até de medo. Seus olhos acompanhavam os movimentos dos turistas que conversavam, riam e não se cansavam de disparar flashes durante o passeio. 
Daiane já conhecia cada pedra que adormecia sob os ferros resistentes dos trilhos e cada folha seca que se lançava dos braços das árvores durante o outono. A princípio era reconfortante ver a nuvem cobre de folhas a se difundir sem pressa pelas janelas dos vagões. Havia sempre uma centelha de esperança acompanhando aquela luta lenta, até romântica, travada entre o vento frio e os cabelos já sem vida da mata. E cada passeio se transformava em promessa de dias melhores, algo que alimentava o coração dela de uma fé regeneradora.

Mas, para Daiane, aquele passeio não tinha mais o mesmo frescor da novidade que fazia os olhos dos turistas daquele vagão saltarem de deslumbro. Enquanto eles olhavam com admiração a natureza intocada lá fora, Daiane mirava nas bagagens e nos movimentos distraídos das pessoas ao seu redor. Ela apenas aguardava a hora certa de agir, um momento precioso de distração, sem que olhos julgadores pudessem alcançar a incompreensão de seus atos.

De repente, entre o burburinho de vozes alegres, fez alto e claro o aviso do guia turístico: - No próximo quilômetro, vamos fazer uma parada para conhecer uma fazenda histórica, um lugar belíssimo que vocês irão adorar.

O coração de Daiane começou a se manifestar com suas conhecidas pontadas de ansiedade. Toda vez era a mesma coisa, ela sempre temia ser descoberta. Mas o medo era sempre superado pelo alívio de passar despercebida. “Hoje não será diferente”, murmurou para si. Quando o trem parou e as pessoas se levantaram para descer, Daiane, sentada no último banco daquele vagão, abriu sua bolsa preta de couro ecológico e tirou dela alguns papeis. Levantou-se, e ficou atrás de uma fila de turistas que aguardavam para saltar do trem e conhecer o próximo destino.

Em frente a Daiane havia um rapaz asiático, que levava sua mochila grande nas costas, assim como a maioria dos turistas de lá. A hora havia chegado e Daiane teria que ser rápida e discreta. Tomando coragem, ela abriu devagar o zíper da mochila e enfiou lá dentro um dos papeis e depois a fechou rapidamente. Pedindo licença, se infiltrou entre as pessoas enquanto as da frente já estavam do lado de fora. Do seu lado direito, havia uma mulher loira com uma bolsa pendurada no ombro esquerdo e, para sua sorte, aberta. Daiane colocou outro papel lá dentro, e seguiu mais a frente, aliviada por ainda não ter sido vista. Fez a mesma coisa na mochila de outros dois turistas, entretanto, desta vez, uma menina de olhos alegres e curiosos notou a cena inusitada, mas resolveu guardar aquele episódio estranho para si.

Já fora do trem, as pessoas começaram a andar pelo lugar e Daiane permaneceu um pouco afastada do grupo. O guia apontou para uma enorme construção de tijolo à vista e convidou a todos para conhecer seu interior, enquanto contava um pouco da história do lugar. Daiane seguia logo atrás, com os olhos no chão. Ela avistou uma pedra encorpada, agachou-se para pegá-la, depois colocou um dos papeis sobre o parapeito de uma das gigantescas janelas, e depositou a pedra em cima para que o papel não saísse voando dali.

Um grupo de jovens mulheres resolveu registrar o lugar e uma das moças sugeriu às amigas deixarem as mochilas no canto onde se encontrava Daiane. Elas concordaram e colocaram as bolsas no chão, enquanto uma delas disse: - Cuida pra nós enquanto tiramos fotos?

- Claro – Daiane respondeu.

A moça se juntou às amigas e elas fizeram várias selfs. Logo se afastaram para fazer fotos de outros ângulos. Enquanto elas estavam entretidas, Daiane aproveitou para tentar abrir uma das bolsas. Mas, para o seu azar, uma senhora elegante e um pouco sisuda viu e gritou: - Hein, o que você está fazendo?

- Nada, eu não fiz nada – Daiane se desesperou.
- Ela estava mexendo naquelas mochilas – gritou a mulher para os outros turistas.
- Não, não é nada disso, posso explicar.
- O que? – uma das moças, dona da bolsa, ouviu e correu em direção a elas.
- As mochilas são de vocês? Ela estava mexendo – denunciou a mulher de cara séria.

As outras amigas foram tirar satisfação com Daiane e um tumulto começou. Os turistas se aproximaram para assistir a cena. Daiane estava sendo acusada de tentativa de furto. O guia se intrometeu, tentando apartar a situação. A menina que a viu colocar um papel na mochila de um turista americano enquanto ainda estavam dentro do trem entrou na confusão: - Gente, a moça não estava roubando.

- Não, eu só queria colocar uma foto dentro da mochila – a voz de Daiane saia entrecortada pelo choro.
- É verdade, eu vi ela fazer isso antes, lá no trem. Colocou uma foto na mochila daquele moço – a menina apontou para o americano. O guia pediu para que ele abrisse a bolsa. O rapaz obedeceu e encontrou uma foto amassada entre suas coisas.
- Vejam, ela está falando a verdade. Pronto, já que tudo foi esclarecido, podemos continuar nosso passeio com tranquilidade e alegria? – Disse o guia.

A moça que havia esbravejado com Daiane balançou a cabeça em sinal positivo. A senhora que a tinha denunciado não disse mais nada, apenas continuou a olhando com desconfiança. As outras pessoas voltaram a apreciar o lugar e aproveitar o passeio. Envergonhada, Daiane saiu correndo para fora, limpando o rosto molhado de lágrimas.

Sentada em um murinho de concreto, longe do grupo, ela guardou na bolsa os papeis. A menina de olhos alegres, que ainda nem havia menstruado, foi atrás de Daiane. Ela estava muito intrigada com a atitude estranha da moça que viajava sozinha.

- Oi, posso sentar ao seu lado? – perguntou a menina ao se aproximar de Daiane.
- Pode. Obrigada pelo que fez, foi muito legal.
- Eu só falei o que vi.

Daiane sorriu, a menina sorriu de volta e perguntou, já não se aguentando mais de tanta curiosidade: - De quem é aquela foto? Por que faz isso?

- Ficou curiosa, não é? - A menina fez que sim com a cabeça e ficou aguardando ansiosa pela resposta. Daiane não ousou decepcioná-la e começou a contar sua história, enquanto a menina ouvia tudo atentamente. Daiane contou a ela que, há algum tempo, conheceu Pedro, um menino de 16 anos. Ele era muito esperto e doce, apesar de tudo. Daiane o conheceu no hospital onde trabalha. Ela é enfermeira, cuida de crianças e adolescentes com câncer. E Pedro tinha leucemia. Ele morava em uma casa muito simples, havia sido criado pelos avós, a mãe o deixou quando ele tinha apenas 5 anos, e nunca mais voltou. Ele não conheceu o pai, e apesar de todas as dificuldades, os avós nunca deixaram que nada faltasse a ele. O avô morreu quando Pedro tinha 12 anos, e foi a avó quem sofreu com ele todos os infortúnios da doença que começou a castigá-lo aos 13 anos de idade. Foram muitas sessões de quimioterapia e radioterapia.

Mas Pedro tinha um sonho: ser ator. Ele chegou a participar do teatro da comunidade onde morava, ajudava a montar a peça, encenava e tudo. O menino tinha talento, bruto ainda, mas possível de ser aprimorado. Apesar da doença, era corajoso e otimista. No entanto, tinha um único medo. Uma semana antes de morrer, já muito doente, debilitado, ele contou a Daiane.

- Daiane, você tem medo de alguma coisa?
- Ah, tenho, claro, muitos medos. De barata, por exemplo. – Eles riram. De repente, Pedro ficou com o olhar distante, triste. – Mas por que perguntou isso?
- É que ... eu tenho medo de uma coisa. – Respondeu Pedro.
- Sério? Achava que você não tivesse medo de nada. Vai me dizer que é de barata também?

Eles riram novamente.

- Não. Eu tenho medo de ser esquecido. – Confessou.
- Não precisa ter medo disso, você não vai ser esquecido, eu não vou te esquecer. Nunca.
- Sério, como pode ter certeza?
- Ué, você é inesquecível menino. – Os olhos de Daiane estavam lacrimejantes. Pedro sorriu tristemente.
- Sabe, eu queria muito que o mundo me conhecesse, queria ser famoso. Queria que pessoas que eu não conheço se lembrassem de mim, soubessem quem eu sou, ou fui.
- Pois eu prometo que você não será esquecido. Prometo que pessoas de toda parte vão conhecer você, fique tranquilo. Enquanto eu viver, não deixarei que o mundo te esqueça. – Muito comovida, pois Pedro era um de seus pacientes favoritos, ela o abraçou e beijou o alto de sua cabeça careca.
- Pedro morreu há cinco anos. E há cinco anos, sempre que posso, faço esse passeio só para colocar a foto dele na mochila dos turistas estrangeiros para que eles o conheçam. Eu já espalhei as fotos dele por vários lugares, bibliotecas, cinemas, praças, escolas. – Daiane olha para a menina e vê que seu semblante mudou, parece fascinado.
- Nossa, mas não seria mais fácil mandar a foto dele pras pessoas pela internet?
- Eu já fiz isso, mas não é a mesma coisa. Um papel tem uma conexão maior com as pessoas, há o tato, é uma forma física de lembrar a existência dele, como se ele ainda estivesse aqui. Entendeu? – A menina balançou a cabeça, mas ficou pensativa. Diane sorriu, abriu a bolsa, tirou uma foto e entregou a ela. - Antes que eu me esqueça.

A menina pegou a foto e viu o rosto de um jovem bonito e sorridente. - É o Pedro?

- Sim. Essa foto fica com você. – Daiane deu um beijo no rosto da menina, levantou-se e foi embora. A menina ficou olhando Daiane se afastar, depois voltou os olhos na foto. Ela virou a fotografia e, no verso, estava escrito: Sou Pedro Oswaldo de Morais, parti aos 16 anos, eu era aspirante a ator. Lá de cima, hoje te conheço. E agora que você também me conhece, sei que não me esquecerá. 
Por Vanessa Olivier






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