HISTÓRIAS PARA SORRIR

Vinho tinto

Elas andavam em fileiras simétricas, cada passo geometricamente ensaiado, três delas carregavam nas costas um grão de arroz. Desceram pelo pé da mesa, continuaram a caminhada pelo piso bordô, e logo desapareceram por baixo de um armário que ficava recostado à parede. Otávio virou o rosto para o papel sobre a mesa, desistindo de tentar descobrir a morada daquela família de formigas. Mas seus olhos não conseguiam acompanhar as letras impressas na folha. Resignou-se ao deixar que os dedos confusos e hesitantes discassem um número de telefone. A voz prendeu-se na garganta ao ouvir alguém atender. Ele ouviu por três vezes a palavra “alô”, e depois o aparelho em suas mãos emudeceu.

Levantou-se da cadeira, pôs-se frente à janela do seu escritório de editor-chefe, lá fora uma noite tranquila molestava a angústia que já não podia mais se calar. Ele ouvia um guinado irritante zumbir em seu ouvido, e o mundo parecia mergulhar em um rio de águas íngremes, onde ao fundo um redemoinho queria sugá-lo para lugar nenhum. Seus olhos não viam a parede cinza de um prédio que engolia a vista da cidade. Não viam a noite que crescia e cobria as ruas como um manto negro, rebuscado de orifícios pelos quais raios de luz rasgavam a escuridão – como os postes de iluminação. Ele também não ouvia a barulheira do trânsito lá de baixo, vozes estridentes que se confundiam com o alarido de música, garfos riscando pratos, cães ladrando, crianças chorando, gargalhadas, o zumbido ainda a todo gás que vinha da redação, e a campainha irritante de seu celular, que não parava de tocar.

A ausência de Otávio não era à toa. Uma vez que o veneno da desconfiança paira sobre um casal, a desarmonia está feita. Há dias que ele havia experimentado o sabor de uma possível traição, algo ainda pior que o adultério comprovado, pois fica a dúvida a corroer o espírito, a suspeita a ferir o amor. Algumas evidências começaram a perturbar Otávio, no dia em que sua esposa, Alice, fez uma viagem a negócios. Ela é representante comercial de uma empresa de produtos de perfumaria. Foi visitar um cliente em uma cidade vizinha. Ao voltar, tarde da noite, Otávio sentiu um gosto de vinho no beijo da esposa.

- Eu tomei só uma tacinha, pra não fazer desfeita. - Ela disse que estava cansada e foi dormir, sem mais palavras. No café da manhã, Otávio percebeu a nítida ausência da esposa.
- Alguma coisa te preocupa? - ele perguntou intrigado.
- Me preocupa?, não, nada - ela fez uma cara de desentendida.
- No que está pensando? Você não prestou atenção em nada do que falei - ele colocava mais açúcar no café, depois de fazer uma careta após tomá-lo.
- Me desculpe, é que estou com pouco de dor de cabeça. Acho que vou tomar um comprimido – ela se levantou e foi pegar uma aspirina na caixinha de remédios, dentro de uma gaveta, no armário da cozinha. 

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Otávio olhou para o seu celular que vibrava e tocava em cima da mesa. Viu o número e não reconheceu.

- Alô?
- Por que demorou tanto pra atender o telefone? - era sua esposa.
- Onde está, não reconheço o número?
- Estou na casa da minha irmã Clarice, vou ficar aqui hoje. Ela não está bem, vou passar a noite com ela. Mas volto em casa pra dormir. Depois eu te explico tudo, ok? Beijos.

Alice desligou o telefone sem dar tempo para as muitas outras perguntas de Otávio. Aquele havia sido o golpe final, e ele sentia uma navalha cortar abruptamente o laço que os mantinham unidos há quase três anos.

Ele anotou o telefone que estava marcado no identificador de chamadas do seu celular. Discou o número, e esperou eufórico no outro lado da linha. Chamou várias vezes até cair a ligação. Tentou de novo, e mais uma vez e outra. Nada. Ninguém atendia. Otávio resolveu ir até a casa da cunhada. Antes de sair, pegou o papel que estava sobre a mesa e o colocou no bolso da calça.

Ao chegar não viu o carro da esposa estacionado na garagem, e nem em frente. Respirou fundo, já tendo o suor a gotejar de sua fronte. Tocou o interfone, uma, duas, três, quatro vezes, até que alguém atendeu.

- Quem é? Perguntou uma voz de mulher, parecendo irritada e cansada.
- Sou eu, o Otávio.
- Só um minuto.

A porta se abriu e uma mulher com uma toalha na cabeça ganhou os olhos dele.

- Onde está a Alice?
- Alice?

O marido percebeu o vacilo, baixou os olhos, balançou a cabeça, virou-se para a rua. Ele estava desorientado, seus batimentos cardíacos haviam perdido o equilíbrio, um suor teimoso umedecia sua testa, a vista estava embaralhada.

- Otávio! Espere - gritou Clarice ao vê-lo, abobada, correr para o carro como um desvairado.

Otávio pisou no acelerador e ultrapassou os carros que estavam a sua frente. Seu raciocínio não acompanhava o bom senso, e as cenas de traição se desenhavam em sua mente. A esposa havia mentido, onde estaria? Era tudo um torturante mistério que precisa chegar ao fim. Não importava o qual fosse. De repente, resolveu estacionar o carro em uma vaga proibida. Tirou do bolso o pedaço de papel. As letras contidas na folha arrancavam lágrimas de ódio de seus olhos aflitos. Era a cópia de um e-mail enviado à sua esposa, às 16h30 de hoje.

“Preciso de você hoje. O seu amor vai guiar minhas mãos para que eu possa atingir a perfeição. Só assim acho que poderei satisfazê-la. Aguardo-a em meu apartamento. Estou saboreando “aquele” vinho para a minha total inspiração. Não demore.
Beijos,
Vand”

“Vand, então é você, seu desgraçado maldito!”, murmurou Otávio, com os dentes serrados e as mãos amassando o papel. O gosto do vinho na boca da esposa era o gosto da vil traição, ele pensou. O cliente agora virou amante. Ele tinha certeza da traição, mas não poderia provar. Ainda havia a possibilidade de uma outra verdade, camuflada pelo seu ciúme. Ele precisava descobrir e se lembrou de algo que poderia ajudá-lo. Vand é dono de uma loja de produtos de beleza que fica no Shopping Piracema. No caminho até a loja, Otávio começou a rememorar alguns fatos suspeitos.

Há uma semana, ele chegou em casa e encontrou a esposa trancada no quarto. Achou estranho, porque ela nunca trancava a porta. Ela levou alguns segundos para abri-la. - É a força do hábito. Agora estou tendo que trancar a porta do escritório para não ser importunada. - ela o beijou com carinho e saiu. Otávio notou uma pasta no chão, ao lado da cama. Alice voltou para pegar a pasta e disse que eram anotações de trabalho.

“Talvez fossem cartas de amor”, ele resmungava engolindo o ódio que exprimia seu coração. Quando chegou ao shopping, estacionou o carro na primeira vaga que encontrou. Ao se aproximar da loja, um sino começou a tocar em sua mente. Ele sentia que estava próximo da verdade, e por isso um medo desenfreado chacoalhava as arestas de fel de seu rancoroso coração.

Uma moça de olhos rasgados o atendeu com um sorriso nos lábios tingidos por uma cor marrom glacê.

- Em que posso ajudá-lo?
- Procuro o proprietário do estabelecimento - ele tentava conter o nervosismo.
- Ele não está. Sobre o que se trata?
- Preciso falar com ele urgente. Onde ele está?
- Acho que foi pra casa, quer que eu deixe recado?

Otávio suspirou fundo e pensou um pouco. Teria que inventar alguma boa desculpa para que a moça informasse o endereço do suposto rival.

- Olha, eu sou um velho amigo dele. Há tempos nós não nos vemos, porque eu estive fora por muitos anos. Eu queria fazer uma surpresa. Se você quiser, posso deixar meus documentos, como prova da minha honestidade. Eu só queria o endereço dele, pra fazer uma visita. Amanhã terei que voltar pra Recife, onde estou morando agora. Você, por favor, poderia me ajudar?

A moça o encarou com desconfiança, mas sorriu e pediu um minuto. Ela saiu à procura de uma segunda opinião. Otávio meteu as mãos no bolso para esconder o tremor causado pelo seu nervosismo. Logo ela voltou acompanhada de uma outra mulher, de mais idade.

- Pois não? - disse a outra funcionária, que vestia blazer preto e jeans escuro, e usava uma maquiagem sutil nos olhos pequenos.
- Meu nome é Otávio. Como já disse a ela, sou um velho amigo do Vand. Eu queria .....

Ele repetiu tudo, utilizando novos argumentos, mais convincentes, colocando mel na língua, gentilezas no olhar. Tirou os documentos da carteira e entregou à mulher.

- Ah, não, acho que não será necessário. Vou fazer melhor. Vou ligar para a irmã dele, que o senhor deve conhecer, ok? Ela pegou o telefone e começou a discar o número.
- Não, é melhor não. Ela não se lembrará de mim. Sabe, já faz muito tempo. Na verdade, eu nem tive muito contato com ela.

A mulher desligou o telefone e o olhou dos pés a cabeça. Baixou os olhos, pensou um pouco, enquanto batia repetidas vezes as unhas compridas e vermelhas no balcão.

- Veja bem, não é que desconfiamos do senhor, afinal, o senhor parece ser uma pessoa decente, honesta. Mas, sabe como é, os dias de hoje estão difíceis, e nós nem ao menos temos autorização para dar o número do telefone dele a outras pessoas.
- Eu entendo, é claro. Mas vim aqui só pra fazer essa visita. Creio que não haverá problemas. Eu deixo meus documentos com você. Tenho certeza de que ele ficará muito feliz com minha visita. Não digo que foram vocês que passaram o endereço, ok? - ele piscou um olho. Otávio tinha lábia, um porte elegante e jeito sedutor que logo fisgava a atenção das mulheres. Elas se entreolharam, a mais velha sorriu, ergueu uma sobrancelha e fez cara de quem não tem outra opção a não ser atender ao desejo daquele homem bonita e simpático.
- O senhor, por favor, pode me deixar seu telefone, nome e endereço? - ela pegou uma caneta e um bloco de notas.
- É claro - ele sorriu vitorioso. 

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Otávio estava a caminho do apartamento de Vand. O coração diminuía a potência, cansado da corrida desenfreada. Quanto mais se aproximava da verdade, um turbilhão de coisas passava diante de seus olhos esgazeados. Logo que chegou, olhou para o edifício e pensou em voltar. Mas se lembrou do e-mail, da mentira que a esposa inventou para poder se encontrar com Vand, do gosto do vinho, da estranha e repentina distração de Alice, e assim por diante. No estacionamento, avistou o carro da esposa. Sentiu um arrepio no couro cabeludo e achou que iria vomitar. Mas ele precisava enfrentar tudo aquilo. Então, aspirou o ar com força e soltou-o devagar, desceu do carro e foi até a portaria.

- Apartamento do Vand.
- Quem é?
- Um amigo dele.
- Qual o nome, por favor?
- Carlos.
- Espero um minuto, vou avisá-lo.
- Não precisa, eu já vou subir.
- É preciso sim. Só um minuto, por favor.

Otávio ficou apreensivo, e não sabia o que fazer. Não poderia se identificar, pois queria presenciar um flagrante. Mas a porta que dava acesso aos apartamentos só era aberta com a autorização do porteiro, sob o consentimento do condômino.

- Carlos do quê? Ou da onde? - perguntou o porteiro, com o telefone encostado na nuca.
- Sou um antigo amigo dele, já faz muito tempo que não nos vemos. De nome acho que ele não vai lembrar mesmo. Então, por favor, me deixe subir.
- Eu não posso. Me diga, pelo menos, seu sobrenome.
- É Martins, Carlos Martins.
- Ok, só um minuto.

O coração de Otávio estava em tão fortes alardes que ele temia ser ouvido pelo porteiro.

- Ele disse que não se lembra, mas vai descer, dentro de alguns minutos, tudo bem?

Otávio já estava farto daquela situação. Não podia vacilar, queria ver com os próprios olhos a traição. Seus nervos já não obedeciam mais a lógica, o bom senso, a inteligência. Ele voltou para o carro, lá dentro poderia pensar melhor. Mas seu raciocínio fugia pelas portas abertas da aflição. Abriu o porta-luvas, avistou o revólver de brinquedo que ele usa para se defender da violência da grande cidade. Aparentemente, era um autêntico Taurus, calibre 38. Tomou-o nas mãos, seus olhos estavam brilhando de devaneio e medo. Desceu do carro, foi até a portaria, com a arma falsa no bolso da calça, e um sino cada vez mais estridente martelando em sua cabeça.

- Eu vou subir, ok? Não posso esperar mais.
- Não pode, já disse que o Vand já vai descer - o porteiro percebeu a nítida perturbação de Otávio.
- Abra a porta que já estou perdendo a paciência - Otávio estava com o tom da voz alterado.
- Já disse que não posso, por favor, não insista; o porteiro começava a ficar nervoso.

Otávio levou a mão direita no bolso da calça e tirou o revólver, discretamente. Aproximou-se do vidro que o separava do porteiro e apontou a arma, que tremia em sua mão. O homem se afundou na cadeira, e procurou com os olhos o segurança.

- Agora abra a droga dessa porta se não quiser levar bala no meio da cara - ele falou baixo, demoradamente, cada palavra carregada de ameaça, os olhos apertados, o rosto frio. Sem titubear, o porteiro obedeceu, tendo os olhos em espanto. Otávio guardou o brinquedo e correu para o elevador, enquanto o homem da portaria acionava os seguranças.

Ele estava a um passo de encontrar o que não desejava. Sua tez estava pálida, gotas finas de suor escorriam pelos cantos da testa, pois já começava a imaginar a cena da traição. Pensava no que iria dizer, com pavor de estar buscando palavras para agredir a mulher e o amante. Não pensava nas consequências de seu ato insensato, só na terrível cena seguinte que poderia presenciar. Seu coração recebia alfinetadas incessantes de dor. 




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Estava ele, em frente à porta, com o dedo indicador sobre a campainha. Logo seus olhos encontraram outros, repletos de espanto. Era Vand. Otávio encarou-o, percebendo o nítido horror do suposto amante de sua esposa. Vand segurava uma taça de vinho, e tinha manchas de tinta no nariz, no queixo e no pescoço. Usava uma camiseta regata, deixando nus os braços largos.

- Onde ela está? - Otávio se infiltrava no apartamento, com violência em cada gesto.
- Ela quem?
- A minha mulher, seu desgraçado - Otávio agarrou a camiseta de Vand e a taça de vinho caiu no chão.
- Otávio! - gritou a esposa.

Ele virou-se para ela, e ficou estático, olhando-a com indignação. Alice estava vestida com um roupão de banho.

- Que está fazendo? Ficou louco?
- Você ...., eu nunca poderia imaginar - ele gritava descontrolado. - Não acredito no que estou vendo.

A campainha tocou, Vand foi atender, eram dois seguranças. Eles entraram porta a dentro, armados de cacetete.

- Que está havendo? - perguntou um deles.
- Nada, vocês podem voltar.
- Mas ele está armado – disse o outro.
- É um mal entendido. Pode deixar que eu resolvo, está tudo bem, ok?

Estático, Otávio continuava encarando a esposa que também havia emudecido.

- Tem certeza, se não vamos chamar a polícia.
- Imagine, não é necessário. Nós podemos resolver isso conversando. Não se preocupem - Vand tentava ocultar a bomba que estava prestes a explodir dentro de sua sala. Os seguranças se entreolharam desconfiados, e acabaram por consentir, um pouco contrariados. Vand fechou a porta.
- Otávio, não é nada disso. Fique calmo, você está muito nervoso. Vou pegar um copo d’água pra você - Vand correu até a cozinha.

Otávio começou a se sentir ridículo. Alice estava parada, mordendo os lábios, e estalando os dedos das mãos.

- Por que você me traiu? Eu acreditei em você, pensei que você me amava. Acho que na verdade nunca te conheci - ele tinha veneno nos olhos.
- Do que está falando? Você entendeu tudo errado meu bem. Senta aí que eu vou te explicar.
- O que? Me explicar? Você mente que vai passar a noite na casa da sua irmã e eu te encontro aqui, vestida com o roupão do seu amante, e você diz que eu entendi tudo errado? Você pensa que eu sou um idiota? Era por isso que estava estranha, e o e-mail que aquele desgraçado te mandou? Entendi errado? Francamente - ele andava de um lado para o outro, com as mãos na cabeça, as lágrimas queimando por dentro dos olhos vermelhos.

Vand voltou com o copo d’água. Otávio fez o copo voar e se chocar contra a parede, partindo em mil pedaços. Saiu do apartamento, aturdido, sem saber ao menos para onde ir. Alice correu atrás dele. Agarrou-o pelo braço, pediu-o para ouvi-la, chacoalhou seus ombros e, por fim, foi jogada ao chão com violência e rancor. Neste momento, alguns vizinhos assistiam curiosos e assustados a cena no corredor. Na queda, ela bateu com força a cabeça na parede e desmaiou. Vand correu para ajudá-la.

- Olha só o que fez!

Otávio ignorou o ocorrido, e apressou-se em deixar o local. Achou que era encenação da esposa, pois estava ferido e atordoado demais para raciocinar. Saiu correndo para o elevador. Pelo canto do olho viu os seguranças correrem ao encontro de Alice e Vand. Logo foi visto pelos homens vestidos com terno preto. Enquanto fechava a porta do elevador, um deles gritou: - Pare! Volte aqui!

Chegou ao estacionamento, entrou no carro e chorou encolerizado com a cabeça rente ao volante. As águas íngremes do rio tinham conseguido puxá-lo para o redemoinho que varria o fundo, e o levava à cova da vida. Ele havia se enterrado entre seus temores, e desejava apenas acordar daquele dantesco pesadelo. Mas a realidade era cruel e, o golpe, fulminante.

Ele ligou o carro, mas algo o prendia naquele lugar. Viu, pelo retrovisor, os seguranças procurando-o com os olhos. Deitou-se no banco, para que não fosse visto por eles. Permaneceu naquela posição por um tempo, pensando, chorando, sofrendo. Ouviu o barulho de uma sirene, resolveu sair dali. Lá fora, viu uma ambulância estacionada. E minutos depois, paramédicos carregando Alice sobre uma maca.

- Meu Deus! O que foi que fiz! - Otávio saiu do carro e correu até a ambulância. Vand estava ao lado, junto com uma porção de curiosos.
- O que aconteceu com ela?
- Você ainda pergunta? Não se lembra? Nervoso, Vand subiu na ambulância, Otávio também tentou subir, mas os paramédicos o impediram. Os dois seguranças agarraram Otávio.
- Eu sou o marido dela - ele gritou, tentando se desvencilhar.
- E também o responsável disso tudo - disse Vand. - Podem soltá-lo - ele ordenou aos seguranças.
- O que está falando? Eu sou a vítima aqui.
- Vítima? Você age com violência e é a vítima? - Vand desceu da ambulância. Os seguranças soltaram Otávio, mas continuaram ao lado.
- Cala boca seu desgraçado. Você dormiu com a minha mulher.
- Você ficou louco!

Um dos paramédicos interrompeu a discussão. - É melhor vocês ficarem, ela precisa de cuidados médicos imediatamente. 


- Não, espere, eu sou o marido dela - Otávio foi subir na ambulância, quando Vand o puxou pelo braço.
- Eu vou com ela, você fica se não quiser que eu o denuncie pra polícia.
- Seu desgraçado, eu deveria te matar.
- Me matar por que?

Nesse momento, os paramédicos entraram na ambulância e fecharam a porta, deixando os dois para trás. Eles correram atrás da viatura, mas já não dava mais tempo. Otávio entrou no carro, e disparou até o hospital. Quando chegou, foi até a portaria para saber se ela já havia chegado. A moça pediu para que ele esperasse, pois iria verificar. Otávio olhou para trás e viu Vand.

- O que está fazendo aqui?
- Vim ver minha amiga - respondeu Vand.
- Amiga ou amante?
- Dá onde você tirou essa idéia? Sabe de uma coisa, você é doido e não merece uma esposa como a Alice.

A moça virou-se para Otávio e disse muito séria: - Ela está aqui. Acabou de ser levada para a UTI.

- UTI? - perguntaram os dois, ao mesmo tempo.
- Ela teve traumatismo craniano.

Otávio sentiu o coração apertar e uma vertigem o fez apoiar as mãos no balcão.

- É melhor vocês aguardarem na sala de espera. Logo o médico irá falar com vocês - disse a recepcionista. 

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Sentados na poltrona da saleta, estavam em silêncio, pois a situação era delicada demais. Otávio tinha as mãos na cabeça, os cotovelos apoiados no colo, os olhos nadando na dor, no turbilhão de sentimentos confusos que vieram ferir seu coração. Vand olhou para ele e sentiu pena.

- Não sou amante da sua esposa. Tão pouco dormi com ela. Você fez um julgamento precipitado. Otávio ergueu a cabeça, mas não estava interessado naquela conversa. Apenas tentava compreender o que havia acontecido. Vand continuou: - Era para ser surpresa, mas agora já era.

- Do que está falando?
- Eu sou artista plástico, pinto retratos. Quando Alice me procurou para fazermos negócio ela viu um quadro feito por mim. Era o retrato de minha mãe, que já faleceu. Eu o deixo pendurado na parede do meu escritório. Ela gostou e me encomendou um trabalho. Ela me pediu para pintar um retrato de vocês dois, para te dar no aniversário de casamento. É amanhã, não é?

Otávio estava confuso. – Mas e aquele e-mail?

- E-mail?
- Você sabe, o e-mail que mandou pra ela hoje. - Otávio buscou no bolso de sua calça o papel. Estava amassado, mas dava para ler. Vand pegou o bilhete e riu.

- Bom, pode mesmo parecer comprometedor, mas escrever é meu outro hobby. Eu queria que ela fosse ver a pintura e me ajudar a terminar. Sabe, dar um toque final. Eu gosto das coisas com perfeição, e tenho mania de tomar vinho quando estou terminando uma obra.
- E o roupão? Por que ela estava vestindo roupão?
- Ela me pediu para deixá-la terminar de pintar a blusa que você estava vestindo no retrato. Ela tentou, mas sujou a própria blusa ao esbarrar na tinta. Como tinta pode manchar o tecido, eu sugeri que ela usasse o roupão, enquanto lavava e secava a roupa na máquina. Ela queria que ficasse pronto hoje, pra fazer essa surpresa pra você.

Otávio estava com náuseas. Tudo era confuso demais, ridículo demais, estúpido demais.

- Além do mais, Alice não faz meu tipo. Eu sou gayl.

Otávio se levantou, andou pela sala, olhou para Vand, horrorizado e perplexo.

- Como posso acreditar no que diz?

- Quer ver o retrato lá no meu apartamento? Você verá de qualquer jeito. Olha aqui! - Vand tirou do bolso da calça uma fotografia. Era Otávio abraçado com sua esposa. A foto preferida do casal.

- Foi este retrato que pintei. Está vendo?

Otávio sentia a cabeça rodar. Sua insensatez o levou a desconfiar de sua esposa e, pior ainda, a quase matá-la. De repente, não sabia mais se preferia ter sido traído, pois a desconstrução abrupta do adultério em sua mente era ainda mais cruel. Pensou que enlouqueceria, seus pensamentos voavam com tal ligeireza que era impossível encontrar um equilíbrio, e ele se via em meio a um tornado, onde o vento faz os pés saírem do chão, e tudo girar numa velocidade absurda. Ele olhou para Vand, que sentado no sofá, com os olhos a açoitá-lo e fazê-lo sentir-se ainda mais desvairado, acabava por completar aquele espetáculo de falência e miséria humana. Sentiu-se fraco, humilhado, com vergonha e ódio de si, asco do tempo, raiva de não possuir o poder de fazer com que as horas recuassem para evitar toda aquela tragédia. Nada agora lhe restava, a não ser torcer para o restabelecimento de sua esposa. Quanta estupidez, ele praguejava a si.

Alice permaneceu três dias recebendo tratamento intensivo, depois ficou uma semana sob observação médica. Vand não cobrou pelo retrato. Depois de recuperada, ela já não queria mais o quadro, disse ao artista que lhe traria más recordações. Otávio implorou perdão à esposa e passou semanas e meses esperando. Mas o amor de Alice venceu a mágoa e o casal voltou a viver juntos. Sob os lençóis do amor, um dia ela disse: - Surpresas não mais meu bem. - Ele sorriu, amadurecido, com cara de quem aprendeu a lição, e falou: - Parcialidade nunca mais minha querida. 


Por Vanessa Olivier

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