HISTÓRIAS PARA SE APAIXONAR

Chuva e Arco-íris
Eles se encontraram por acaso, quando o firmamento já não sabia mais se queria chuva ou sol. Um arco-íris riscou o chão da rua, em frente ao ponto de ônibus onde estavam. As pessoas precisavam ficar bem próximas às outras para se protegerem das águas frias da primavera. Algumas esperavam condução, outras, uma trégua para poder caminhar sem correr o risco de ficarem encharcadas. Era o caso de Daniel.

Dalila maravilhou-se quando viu a beleza das sete cores ornamentar a rua de sua cidade. Chamou a atenção dele para o acontecido, pois Daniel estava ao seu lado. Ele olhou em seus olhos, eram duas esmeraldas a faiscar um brilho que jamais havia visto antes. O arco-íris perdeu o encanto, e nada era mais belo para ele do que os olhos de Dalila. Mas o ônibus chegou e ela disse-lhe: - Até a vista. - Ele perguntou seu nome. – Dalila.

Nos dias seguidos, Daniel esteve no mesmo ponto de ônibus, na mesma hora, esperando revê-la. Passou-se uma semana de ansiedade e desesperança, quando finalmente seus olhos avistaram o verde do olhar de Dalila a espreitar pela janela de um ônibus. Ele correu o mais rápido que pode para alcançar o veículo que já sumia de sua vista. O fôlego morreu no alto da boca, e a alegria também. Parou para descansar, aspirando com força o ar perdido dos pulmões. Sentou-se na calçada, exausto de lutar contra a asma que vinha sempre quando o passo era maior que suas pernas. De repente, sentiu alguém tocá-lo no ombro:
- Você está bem?

Daniel virou-se e foi surpreendido pelas duas esmeraldas que havia encontrado num dia de chuva e arco-íris. - Dalila? - ele se levantou, mal conseguindo se apoiar nas próprias pernas. 

- Nossa, você lembrou meu nome! - ela sorriu e isso era um sinal de que as coisas poderiam caminhar bem.
- É que eu tenho boa memória - ele estava um pouco zonzo.
- Ah, acho que estava mesmo querendo aquele ônibus. Mas não se preocupe, o próximo não vai demorar.
- Eu... é ... na verdade ... eu não queria o ônibus .... eu queria .... - As palavras fugiram de sua boca e ele ficou em silêncio, açoitado fragilmente por uma teimosa timidez, que sempre o deixava em maus lençóis. Dalila sorriu, percebendo o vacilo do rapaz à sua frente, com o mesmo olhar de tantos outros garotos que ela já estava habituada em receber.
- Sei o que queria.
- Sabe? Como sabe? - ele estava desarmado.
- Você queria me ver. Sei disso porque eu também queria o mesmo - ela sorriu e começou a caminhar.
- O que disse? Você queria me ver? - ele tentava alcançá-la. Sem palavras, Dalila parou e virou-se. Eles estavam bem próximos, de um jeito que podiam sentir a respiração um do outro. E sem esperar mais nada, ela o beijou. Daniel não soube naquele momento se era sonho ou realidade. Mas pode ir ao céu, mais alto do que as nuvens, num voo transcendental. E pode voar mais vezes, por muito mais tempo, e sentir que o amor não conhecia geografia e nem matemática.

Dalila também sentia um carinho ímpar, mas seu coração há muito já era ocupado por outro. Tentava sempre se desligar dessa paixão inventando falsos amores. Porém, toda vez acabava se distanciando, pois não era capaz de dar chance ao amor. Estava presa em uma redoma de um sentimento que não conhecia ternura, somente desejo. E nunca, nada ganhava em troca, a não ser poucas noites de prazer e solidão. Ela enxergou em Daniel uma possível liberdade. Talvez, ele a fizesse esquecer o homem que jamais seria seu, pensava ela.

E foi num dia de chuva fina, arco-íris no céu e na terra, lago azul, que Daniel voou para bem mais longe. Num lugar não sabido, não imaginado, mas vivido por somente aqueles que conheceram a outra face do amor. Daniel soube que o amor também era dor. E chorou incontáveis milímetros. Por longos dias, longas noites.

O domingo anunciava o descanso mole de um dia inteiro no sítio. As plantações de cana estavam mais douradas do que no dia anterior e o ar parecia mais límpido, fresco e saudável. Eles olhavam os cisnes flutuando garbosos sobre o lago azul. Daniel tinha o olhar inquieto, incapaz de mirar apenas um alvo de uma vez. Havia nele uma imensidão de promessas, uma confusão de anseios, diversas vozes da natureza cantando num coro uníssono. Era pressa e paciência, calma e euforia, êxtase e descanso. E por isso não pode ver o que os olhos de Dalila diziam no silêncio daquela bela tarde.

Ela olhava os cines, mas via muito além. Estava bem mais longe, num canto perdido onde um pequeno “eu” gritava por socorro. Ela era medo e força, desconsolo e paz. Um rio correndo brusco sobre uma pequena queda d’água. Ela era uma tímida cachoeira. Daniel olhou para ela, apertou com carinho sua mão, suspirou na tentativa de fazer os lábios buscarem as palavras corretas. Ele tinha todos os sentidos voltados a si, e por isso seus olhos juvenis viam apenas as duas esmeraldas que iluminavam o rosto de Dalila. Ensaiou um olhar de mistério sem perceber que uma teia de nós tecia um sorriso maquilado no semblante dela. E ele assinalou sua sentença.

- Quer se casar comigo? - ele tinha o olhar mais sincero e puro que Dalila já havia visto. Mas o dia estava lindo, havia um pequeno paraíso diante deles, a garoa fina nem chegava a molhar o caracol dos cabelos dela. Era como beijos de anjos e serafins. Dalila colocou força nos dedos sem ao menos perceber. Daniel sentiu o aperto e achou que era prazer. Mas não era. Por fim, os dedos dela se abriram bruscos e uma inesperada fuga rompeu o silêncio daquela tarde úmida. Dalila fugiu. Ela era vendaval.

Ele ficou só, vendo o campo florido sugar Dalila, e tão logo perdê-la dos olhos. Daniel a perdeu. Perdeu-a no glorioso sim, na confissão de alma debaixo de uma garoa fina, que mal podia tocar todo o amor que trazia no peito, no beijo que imortalizaria aquele momento, mas que ficou suspenso, vivo apenas na imaginação. Ele a perdeu naquela tarde de domingo, para sempre.

- Dalila! - gritou mais alto que pode e mais forte do que a voz magra agonizando na garganta. Seus gritos ecoaram por todo o campo e morreram com as lágrimas que se misturavam à chuva fina. Daniel levou a mão ao bolso e trouxe para fora duas jóias douradas como o canavial. As alianças do sacramento matrimônio.

Dois dias de agonia se passaram e logo veio o fim. Uma carta varreu o mundo dos pés de Daniel e ele caiu. Um golpe fulminante, frio e covarde. Mas a verdade gritava e era inútil tentar calá-la. Dalila tinha um fruto no ventre. No entanto, Daniel sabia que jamais seria pai, pois era estéril. Ela esperava um filho que não era seu. Ele se sentiu desestabilizado. Mas Dalila seria mãe e ele não poderia odiá-la. Ela carregava no ventre uma outra vida, coisa que ele jamais poderia dar a uma mulher. A traição não importava mais, nem queria saber o nome daquele que havia plantado nela a sua semente e, depois, covardemente, rejeitado mãe e filho. Percebeu, tarde demais, que sabia pouco dela. Porém, ainda havia uma esperança em seu coração afoito de menino.

Depois de procurá-la o dia todo, a encontrou de malas prontas, no mesmo local onde se conheceram. Ela sentiu medo mais uma vez, maior do que quando resolveu mandar a carta a ir ter com ele. Mas Daniel não queria vingança. Em seus olhos, apesar da dor, banhava um oceano de amor e perdão. Ele tentou convencê-la e lhe pediu que ficasse.

- Não quero saber quem é ele. Mas se você quiser, estou disposto a aceitá-la de volta. Serei o pai dessa criança - ele tinha os olhos pesados de lágrimas reprimidas.
- Não pode - a voz de Dalila saiu agoniada e forte. O ônibus chegou. Ela pediu ao motorista que esperasse.
- Por que não? - Dalila tinha a respiração muda dentro do peito. Parecia que estava morta, mas era medo.
- Porque .... é ...; ela foi traída por teimosas lágrimas que desciam pelo rosto apavorado.
- O que foi? Responda! - ele estava ficando aflito com um medo maior que o dela.
- Porque será seu irmão - Dalila pegou as malas e tomou o ônibus, deixando-o numa confusão absurda. Daniel ficou paralisado, vendo o verde do olhar de Dalila na janela se perder de sua vida. Ele era temporal.

Dalila o havia traído com seu próprio pai. Um homem com quem não mais dividia sua vida, mas que desde o nascimento fora ensinado a amá-lo e respeitá-lo. Agora sentia que não precisava mais obedecer às regras da vida, mesmo porque o amor não é feito de regras. O amor desconhece a gramática. Poderia agora odiá-lo livremente, desde quando sentiu vontade, no dia em que ele trocou sua família por outra. Mas não o fez, pois era seu pai, lhe devia respeito e amor. Mas o amor não conhece leis. E Daniel se sentiu mais uma vez roubado, mesmo sabendo que não era verdade. Pois ninguém pode ser roubado daquilo de que não lhe pertence.

O dia tinha amanhecido sem que a luz se desse conta, pois ainda estava escuro, rastros da chuva que havia caído durante a madrugada. As gotas restantes do temporal pingavam no lago que já era quase rio fazendo um barulhinho bom aos ouvidos. Daniel acompanhava o anel que se formava na superfície toda vez que um pingo encontrava as águas azuis. Os olhos dele estavam secos, por dentro e por fora. Ele era milhões de areias num deserto imenso. Era um coração que ainda abraçava um amor maior que o seu ódio. Porque o amor desconhece limites. Ele era uma concha num oceano infinito. Pequeno, mas guardião de um tesouro raro. Ele ainda era chuva e arco-íris. No entanto, apesar de tudo, Daniel também era solidão. 


Por Vanessa Olivier


“O peixe morre pela boca” 
Ele fechou o livro e olhou para o relógio. Esfregou as mãos frias para ativar o sangue preguiçoso e abandonou a varanda de sonhos. Sabia que não tardaria a hora de Érica chegar. Mas, mesmo assim, o coração já repicava aceso, e os segundos misturavam-se às horas e dias, num intervalo infindo. Tentou se ocupar de outra forma. Ficou apreciando as listras multicoloridas que adornavam o dorso de seus adoráveis seres marinhos. Percebeu que um dos peixes parecia mais quieto do que o costume. Tocou de leve a parede do aquário com o dedo indicador na esperança de ver alguma reação na pobre criatura. Frustrou-se ao se convencer de que o bichinho padecia de algum mal. Pensou insensato: “Deve ser falta dela”.

Voltou-se ao seu mundo de cacos e cinzas ao ouvir a campainha tocar. De um sobressalto, se apressou em alisar a cabeleira e a conferir a validade do desodorante. Suspirou fundo, tentou buscar ar e coragem, lembrou-se do peixe, mordeu os lábios, mas resolveu seguir em frente. Diante dele, dois pares de olhos que antes festivos, encontravam-se recolhidos a algo ou alguém. Ele não disse palavras, mas ela disparou sem dó:

- Você vai me deixar entrar, ou vai ficar me olhando como uma estátua? - Leonardo se sentiu como num sonho, naquele momento em que está prestes a encontrar o tesouro e uma súbita voz, ecoada da garganta de sua mãe, rouba a cena.
- Claro - disse, sem saber como reagir. Érica entrou, saldando o ar com o afrodisíaco aroma de seu perfume. Tirou o casaco cinza de linho e o descansou nos braços de uma poltrona. O vestido preto de nylon ressaltava suas formas, ao mesmo tempo em que as botas de cano alto alongavam sua silhueta. Leonardo a achou mais magra e sofisticada. Percebeu que os cabelos haviam ganhado mechas douradas e que a pele parecia mais jovem. Tentou buscar uma explicação para tudo aquilo e preferiu achar que uma viagem renova as pessoas.

Érica olhou ao redor e seu peito arfou dentro do vestido. Voltou os olhos a Leonardo, que estava mergulhado num silêncio ríspido. Ela notou seu devaneio, como de um menino perdido no universo do amor. Recobrou-se de ternura, pondo-lhe doces olhares, os quais ascenderam seu sentimento contido. Ela aproximou-se mais e sentiu a respiração arfante de Leonardo. - Nós tínhamos muitos planos não é? Eu te amei muito.

“Amei”, a palavra ficou tocando na mente dele como um daqueles sinos irritantes de Papai Noel. Não é possível, pensava ele. Há pouco tempo podia sentir em seus olhos que havia apenas os sonhos que eles construíram. Podia sentir que o amor é absoluto e se revelava em cada linha da epiderme de Érica. E agora, frouxo, derrotado, estendia um errante caminho, sem escolhas nem piedade. “Não é justo”, pensava ele. 


- Você disse amei? - as palavras ficaram suspensas em sua garganta, sem encontrar o caminho de volta. Érica não entendeu a pergunta que mais pareceu um murmúrio vindo do além. Mas era o além de suas forças, pois Leonardo se sentia esvaziado, incapaz de alcançar algum sentido. E quando pensou que ainda reinava no coração de Érica, percebeu que a havia perdido.
- Como isso acontece? - ele estava se sentindo sem o chão sobre os pés. Érica ajeitou-se no sofá de almofadas rompantes que parecia querer engoli-la num só golpe. É o típico móvel que as visitas detestam. Fez sinal para que ele se sentasse também. Ela começou a falar, cercada de reservas, como se a verdade fosse realmente algo terrível para Leonardo. Mas as suas cautelas se justificavam, pois diante de seus olhos havia alguém que parecia perdido num mundo de sonhos, esquecido de que a vida possui o dom de renovar todas as coisas.
- Foram oito meses. É difícil manter a mesma chama - ela recobrava-se de forças, tentando ofuscar um sentimento que já não a importava. Havia muito mais, um mundo de escolhas, todas muito sedutoras que ela agora conhecia. Já não convinha mais se casar com um comerciante que mal sabia valorizar suas próprias qualidades. Ver-se enfurnada atrás de um balcão aguentando reclamações de insuportáveis e mal educados clientes. Existia um ardor dentro dela que clamava por novidades, ilusão ou não, de nada importava. Se ainda o amava, ela não sabia e nem queria saber. - Muita coisa mudou. Olha pra mim, acha que sou a mesma que você viu subir naquele avião há oito meses?

Leonardo vacilou, não sabia que resposta daria. Estava evidente a transformação. Não apenas na sua aparência, mas no modo como respirava. Era uma respiração de alguém que tinha pressa, que parecia buscar sempre novos caminhos. Que não tinha tempo para perder com bobagens sentimentais. E, de repente, seu amor virou uma bobagem, daquelas de adolescente complexado que ainda não aprendeu a ver o mundo como ele é. Sentiu-se um tolo a vivenciar um romance que já não existia.

- Concordei que você fosse porque achei que seria pro nosso bem. Sei que quer ser independente. Era uma grande chance pra você. Achei que queria se casar comigo - seu rosto estava enrubescido, talvez pelo calor que lhe subia nas entranhas e consumia seus sonhos.
- Eu sei. Eu queria me casar com você...
- Você está deslumbrada. É coisa do momento, isso passa - ele a interrompeu na ânsia de salvar a última gota de esperança que ainda martelava em seu coração. Érica já não queria ouvir mais nada e muito menos explicar. Olhava ao seu redor e não conseguia se achar ali, no mundo de Leonardo. Num impulso, levantou-se confusa, pois estava sendo acometida por estranhos sentimentos. Lembrou-se dos momentos de paz vividos naquela sala. Nos braços de Leonardo, ela descansava os ânimos e sentia que era dona do tempo.
- Érica, olha pra mim! - Leonardo puxou-a pelo braço encontrando rispidamente a luz dos olhos negros dela que ainda ardia uma paixão recolhida, maior do que ela mesma era capaz de imaginar. Sentiu que os lábios de Érica imploravam pelos seus e a beijou doce e desesperadamente. Mas, depois, um gosto de passado veio amargo na saliva e a brasa que os consumiu por minutos, num beijo longo e sentido, desapareceu.

Leonardo se afastou de Érica, ainda embriagado de seu perfume, mas sem o néctar de um amor vencido pelas transformações da vida. Ela tinha a face enrijecida. Estava sendo açoitada por artimanhas frias do destino. Queria liberdade, mas algo dentro dela ainda pulsava por afeto, pelo amor de Leonardo. Teve vontade de fugir, se esconder, esquecer daquele encontro, dos lábios de Leonardo, de suas emoções misturadas as dela. Mas acabou percebendo que sua vida não passava de uma fuga, incessante e incontrolável. Logo seus olhos se inflamaram de desconsolo. - Não posso mais ficar aqui - ela disse sem tirar os olhos do chão.

Leonardo a olhava impotente, enfastiado de lutar por algo perdido, corroído pela ingratidão do mundo real. Sentiu pena de Érica. Achou que ela não sabia ser feliz e que seus dias seriam sempre assim, vazios e desconexos. - Você não sabe amar. Jamais será feliz - ele ainda queria salvá-la de seu egoísmo. - Nunca será capaz de se entregar a alguém. Ninguém pode ser feliz agindo assim - seu tom de voz era ponderado. Érica ergueu os olhos e o encarou, recuperando a altivez de outrora. E por mais que buscasse uma superioridade soberba, seu olhar não podia esconder uma fagulha de tristeza.

- E você? Sabe como ser feliz? - ela deleitava o mar negro obtuso de seu olhar sobre os olhos de Leonardo. Ele pensou um pouco e percebeu que não tinha a receita para a felicidade. Olhou ao redor, viu o aquário de peixes multicoloridos, seus livros enfileirados na estante, o apartamento intacto, cheirando a oleio de lustrar móveis e lavanda de flores, ouviu o silêncio caindo certeiro entre eles e concluiu que não lhe faltava nada e ao mesmo tempo tudo para ser feliz.
- Talvez não haja receita. Pode ser muito simples.
- Como? - ela retrucou.
- Saber olhar o que temos, por exemplo. No momento, só me falta uma coisa, que pode ser tudo.
- O que? - ela já sabia a resposta.
- Você - Leonardo deu a última carta.
- Você se contenta com muito pouco. Esse é o seu erro - ela dizia sem saber ao certo quem na verdade era o errado.
- Você acha que isso é pouco? Estou falando de amor, de entrega, de nós.
- Nós não existe mais - ela o desafiou insolente. Érica sabia que não era verdade, pois o reencontro reativou a labareda dentro dela, cujos braços de fogo agasalhavam apenas o homem à sua frente, implorando por amor, algo que ela já não sabia como entregar, pois sentia pavor em se doar por inteira.
- Então vá e não volte mais - era o cheque mate de Leonardo.

Érica engoliu seco, sentindo a face ruborizar. Era uma espécie de ódio, raiva de não conseguir sair dali com o coração livre, pronto para novos desafios. Olhou mais uma vez para Leonardo, guardou as lágrimas que já queriam saltitar das pálpebras, o abraço recolhido há oito meses e o beijo, queimando por entre os lábios no ávido de desejo de ter, novamente, os lábios de Leonardo.

- Adeus - ela arriscou um último sacrilégio. Mas antes de abrir a porta, ouviu a voz sussurrada de Leonardo dizer:
- Se mudar de ideia, estarei te esperando.

O coração dela deu um grunhido final, e como num temporal raivoso, bateu a porta e sumiu, sem mais palavras. Leonardo voltou os olhos lúgubres ao aquário e percebeu que o peixe, antes quieto, já estava morto. Pensou desconsolado, mais ainda com uma gota de esperança, que o caminho às vezes se desvirtua dos nossos planos para nos ensinar a viver. E voltou à varanda, depois de tomar um livro nas mãos intitulado: “O peixe morre pela boca”. 


Por Vanessa Olivier

Muito maisEla chegou e não havia mais ninguém na casa. Procurou nos cômodos vazios um vestígio de vida, mas não encontrou nada. Seus olhos se voltaram para a porta e ela viu a fechadura girar. Seu coração trepidou de alegria quando um homem surgiu, deliberado a ficar. Atirou-se em seus braços, entre soluços e beijos, risos e abraços. Ele também a beijou, também chorou e riu. E ficaram por infinitos segundos, abraçados, juntos, sem mais nada. Não havia mais nada entre eles, nem a noite, nem a lua, nem a luz do abajur, nem o tempo que passa.

Mas o dia iria chegar, com raios de sol e uma vida que grita para ser vista. E o trânsito os levaria para longe um do outro. O trabalho desviaria os pensamentos mútuos, pois havia mais lá fora. Muito mais do que o amor, o calor e a sensação de plenitude. Muito além dos lençóis, do silêncio e do prazer. Um mundo de coisas que não tem fim. O trânsito, a fumaça do cigarro, o vai e vem de pessoas que não se conhecem e acabam por se conhecer. Os negócios de sorte e os de azar, o tempo que tem pressa, os pensamentos conflitantes, as conversas no bar. Tem também a curiosidade, a vontade de experimentar.

Ela estava certa disso tudo e sentia medo. Se pudesse, guardaria o marido dentro de um porta-jóias. Quando voltasse do trabalho saberia que o seu mais precioso tesouro estaria esperando por ela. O mundo não o engoliria, e ele seria para sempre dela. Mas ela também sabia que as coisas não eram assim. E a cada nascer do sol, uma angústia pairava dentro dela. Porém, ainda era noite. Ela não queria dormir. Se fechasse os olhos perderia todos os minutos felizes de sua vida. Ele tinha os olhos selados e estava entregue ao sono reconfortante. Ela olhava-o e era feliz por sentir sua respiração e seu calor. Deitou a cabeça no peito do marido e lutou contra o sono. A cada amanhecer, sentia-se roubada, como se o dia levasse um pouco dele para longe. Mas as horas passaram e o sol se levantou quente, tirando do rosto dela a alegria de viver.

O marido levantou-se e percebeu que a esposa não havia dormido. Ela tinha os olhos cansados e parecia nervosa. Ele quis saber o que era, mas ela desconversou. Tomaram juntos o café da manhã, em silêncio. Ela não conseguia sorrir, pois sabia que um mundo de coisas estava lá fora, a espera do marido. Mas, ele já estava cansado. Não aguentava mais o egoísmo da esposa. Sentia-se preso, com medo até de sorrir pela manhã. O seu amor ainda existia, porém, estava enfraquecido. Havia levado muitos golpes e agonizava no mar dos desencantos.

Olhou mais uma vez para a esposa e sentiu que o amor havia acabado de morrer. Ele quis salvá-lo, com abraços, beijos, palavras carinhosas. Mas ela deu a apunhalada final. Seu rosto estava frio, falava coisas sem sentido, inventava mulheres que nunca existiram, e chorava com raiva da vida, da vastidão dos seus caminhos, das suas surpresas e injustiças.

Com tristeza, o marido percebeu que não havia remédio. A cura nunca chegaria e a morte seria inevitável. Ao sentir a indignação nos olhos dele, ela arrebentou-se em lágrimas, o beijou pela face repetidas vezes e o abraçou com força, implorando para ficar. Mas, desta vez, ele partiria, para sempre. Ela se ajoelhou a seus pés e suplicou perdão. Era perda de tempo, ele não voltaria mais. Quando a porta se fechou, ela se viu estirada no chão, arrasada por amar tanto. E finalmente entendeu que, mesmo amando demais, não sabia amar.

Por Vanessa Olivier

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