Eles não
estavam querendo conversa. O mais velho buscava em vão no azul do céu algum
sinal, só não se sabia de quê. Flávio saiu ressabiado, ainda expiando por cima
dos ombros, um olhar meio de esquina, aquele que não quer ser percebido, mas
tem esperança de alcançar algo. Dobrou a quadra, temeroso de que alguém o visse
caminhando na contra-mão de seus valores, sem lenço, documento e razão. Pensou
em voltar, quem sabe os irmãos ainda poderiam mudar de ideia, antes que ele se
afundasse de vez na lama do degredo. Mas era tarde, sua vida agora valia não
mais do que alguns centavos, e o serviço sujo tinha hora para terminar.
O caminho parecia demasiado pequeno. Tentou encurtar os passos para
ganhar tempo e pensar no que fazer. Suas mãos estavam frias, apesar do calor de
quase quarenta graus. O frio vinha de sua alma, já que ele não mais sabia se
ainda a tinha. De longe viu Dalila, brincando com as tranças de aplique, um
sorriso maroto e, ao mesmo tempo, ingênuo, olhos de quem já conheceu a face
mais podre de todo o submundo, mas que ainda acredita que a vida pode ter um
tom rosa, da cor do vestido que ressalta suas curvas fortes de macho-fêmea.
Ela percebeu que Flávio a olhava, mas toda sua sensibilidade de alma
feminina não poderia ser capaz de adivinhar o que se escondia naquele olhar.
Retribuiu-o sem ao menos saber que feição teria seus olhos cor de avelã,
sustentando longos cílios negros postiços, e um tom de azul ofuscante nas
pálpebras. Mas Flávio desviou o olhar e sentiu um suor fino pingar de sua
fronte. Dalila deu de ombros, e voltou a atenção aos companheiros que
vislumbravam nela um prazer o qual ainda poderia satisfazê-los na mediocridade
de uma vida sem valias.
Ele subiu a rampa de solo batido, sentindo que o fim da linha se
aproximava. Acendeu um baseado para consumir suas entranhas e calar o
nervosismo que já atingia seus órgãos vitais. Esperou recostado à parede suja,
cheirando a fumo pesado de quem já se aventurou por espaços ilusórios,
encontrando o céu e o inferno e acabando num chão frio, leito dos covardes e de
quem não tem mais nada. Lembrou-se do tempo em que acreditava poder levar a
vida, sem perceber que a vida o levava, nem sempre para onde queria ir. Acabou
perdendo de vez a direção, e sem oferecer resistência, chegou ao mais baixo
degrau de sua escala.
Flávio continuava aspirando e respirando a fumaça de poluentes
compulsivamente, até que sentiu os lábios dormentes e o coração cavalgar num
ritmo mais lento, no compasso de sua força, aquela consciente. Ouviu passos
arrastados, mas não atinou os sentidos para o que estava por vir. Sua força
inconsciente tentava reagir, mas defrontava-se com o medo, algo tão forte que
ganha corpo e corrompe mais do que o dinheiro. Sentiu uma mão pesada segurar
firme seu ombro esquerdo e percebeu que precisava reagir, o mais rápido
possível.
- Desembucha - disse o brutamonte de nariz grande e olhos pequenos,
que mal se percebe que estão abertos, no ávido desejo de saber quem havia
dedurado seu plano de fuga para poder pedir a cabeça do “alcaguete” traidor.
Flávio apagou o cigarro na parede e não ousou desencostar dela, pois
sentia as pernas frágeis como uma pena solta ao vento. Lembrou-se da promessa
dos irmãos, da lâmina que riscaria sua garganta no escuro de uma cela fria, do sorriso
de Dalila que poderia até apaziguar os horrores da enorme jaula, do dia em que
foi pego com 50 quilos de maconha, das lágrimas de sua mãe, da promessa que
havia feito ao pai falecido, que teve a vida a prêmio por um grupo de “alcaguetes”,
da noite confusa na qual quase não se via nada, a não ser homens fardados
desferindo golpes de cacetetes contra um grupo feroz de pessoas condenadas na
vida e na morte após uma tentativa frustrada de fuga, e voltou o olhar ao
gigante de olhos quase invisíveis, que já demonstrava falta de paciência.
- Como é que é malandro? Foi o traveco ou não? - falou o brutamonte,
expelindo salivas ao pronunciar as palavras com um timbre grave, quase igual ao
ronco de um estômago faminto.
E, novamente, a ameaça dos irmãos “alcaguetes” gritou nos ouvidos de
Flávio, o olhar despreocupado e inofensivo de Dalila, com suas tranças de
aplique, invadiu suas retinas, assim como a noite confusa que começou na
enfermaria quando um grupo de presidiários chegou escoltado para receber
cuidados médicos, entre eles, os irmãos e Dalila. Flávio, auxiliar de
enfermagem e detento do presídio “Vale das Pedras”, surpreendeu uma conversa
entre os irmãos e um tira, na qual um plano de fuga estava sendo dedurado, em
troca de pequenos favores. E já sabendo que a bomba poderia estourar na sua
mão, tentou fazer-se de rogado, mas foi logo descoberto e incumbido da missão
de acusar alguém que incomodava, simplesmente porque tinha alegria e não devia
nada a ninguém.
- Nunca vou ser cagueta - a
frase saiu sem querer, pois Flávio repetiu em pensamento explicito o que havia
prometido ao pai morto a tiros nos becos do submundo.
- Como é que é? - os olhinhos do brutamonte se arregalaram tanto que
até deu para ver a cor que tinham.
- Não ... é, espere - Flávio perdeu o ar, e imaginou o gosto do sangue
escorrendo por sua garganta e a vida o levando para onde sempre temeu. O medo
criava celas imensas que afugentavam sua força inconsciente e o único valor que
se orgulhava de ter em sua vida de misérias. Para ele, entregar alguém era
terrível e pior era acusar um inocente, ainda mais Dalila, que não se furtava
de distribuir sorrisos mesmo sendo os seus dias de pura dor e solidão. Se
falasse a verdade, ou se fizesse de surdo e mudo morreria de uma vez só, mas se
mentisse, a morte poderia vir lentamente, todos os dias um pouco, até que a
última gota de vida se esvaísse de sua vil carcaça.
E sem pensar mais em nada, a
resposta veio suada, carregada de uma vida, um ser humano todo, tudo o que
ainda restava a Flávio e que seus caminhos torpes lutavam para roubá-lo e
levá-lo ao lugar no qual nunca quis estar: no lamaçal de seus valores.
- Não foi - a voz saiu rasgada, como uma tosse de cachorro louco.
- Então quem foi? - desta vez, inúmeras partículas de saliva saíram
junto com a voz de ronco de estômago do gigante de olhinhos minúsculos e foram
encontrar o rosto pávido do ajudante de enfermagem.
- Não sou cagueta - disse Flávio, sentindo as pernas úmidas com a
urina que escorria incontrolavelmente por dentro da calça jeans, mas, que,
contrariamente, demonstrava uma incrível coragem diante de um mundo de
brutamontes covardes e de quem da vida já não tem mais nada.
Por Vanessa Olivier