sexta-feira, 20 de maio de 2016

Dor Feliz

Ao abrir os olhos e levá-los ao alto, avistou a borda do colchão macio e, imediatamente, suas costas reclamaram da aspereza do piso laminado. Não sabia como havia parado ali, no chão frio de seu quarto solitário. Era a terceira vez que acordava, no meio da noite, fora do aconchego de sua cama. E apesar do desconforto, não sentia nenhuma vontade de se deitar naquele espaço, hoje vazio, que um dia acalentara muitas noites de amor.  Preferiu continuar ali, estendida em meio à sua dor, que apesar de feri-la cruelmente, também oferecia um modo mordaz de preencher as lacunas da sua recente viuvez.
Lili queria apenas dormir, não era capaz de lidar com aquele sentimento corrosivo que tirava dela a alegria de viver. Estava irritada, com raiva da saudade que a flagelava todos os dias, principalmente, às noites, privada de ouvir a respiração ruidosa do marido, ou sentir os braços dele enlaçando seu corpo dormente durante cálidas madrugadas. Seu ódio por tudo aquilo era tanto que desejou, com toda força, poder esbofetear a saudade e gritar para ela os mais terríveis insultos.
Após ter adormecido embalada por pensamentos insensatos, acordou horas depois, quando as luzes da manhã já penetravam apressadas pelas frestas da janela do quarto. Lili levantou-se sem vontade, olhou demoradamente para a cama arrumada e foi despertada de seus devaneios com um som que parecia ter vindo da suíte. Descalça, andou na ponta dos pés e se postou ao lado da porta entreaberta do banheiro. Seu coração deu um salto ao ver, pelas frestas, um vulto se mexer lá dentro. Analisou o quarto a procura de algum objeto que pudesse se transformar em uma arma e sorriu quando seus olhos alcançaram o abajur de madeira maciça sob o criado mudo.
Foi buscar o objeto, pé ante pé, e depois voltou com ele ao lugar onde estava. Esperou um pouco, ao lado da porta, que o vulto saísse, mas o seu coração era como uma metralhadora viva, e ela precisava agir. Segurando o abajur com as duas mãos acima da cabeça, chutou com força a porta, escancarando-a. Subitamente, a cor sumiu de seu rosto. Pensou que iria desmaiar, mas a paralisia abrupta de seus membros não permitiu que ela movesse nem ao menos os olhos. Prendeu a respiração por um tempo acima do normal e só a soltou quando seus pulmões começaram a gritar por socorro.  – Isso é impossível! – murmurou estarrecida.
Lili não podia acreditar no que via. O seu desejo insano aflorado com tanto afinco na noite passada estava ali, à sua frente, dentro de seu banheiro. Era real, tinha agora um corpo e um rosto que Lili prontamente os reconheceu. Os olhos de Lili se encheram de lágrimas e ela chorou porque não era capaz de qualquer agressão. Ao conseguir se mexer novamente, abaixou os braços e repousou o abajur no chão. Enquanto as lágrimas dela escorriam derrotadas por sua face pálida, a saudade sorria. Lili estava chocada por descobrir que não a odiava tanto quanto imaginara.
A saudade tinha olhos meigos e um sorriso infantil. Seu rosto era sereno e estranhamente familiar. No primeiro momento, ela tinha a forma de uma criança, mas conforme o tempo passava, adquiria expressões cada vez mais adultas.
- Estou aqui agora. Faça o que desejou – falou a saudade, e o som da sua voz era indecifrável, nem agudo, nem grave. Mas era impossível para Lili esboçar qualquer reação.
- Não posso. – Lili teve vontade de abraçar a saudade, mas ainda não podia reagir.
- Eu sou as suas lágrimas, sou a sua dor.  Eu faço você sofrer todos os dias e noites. Sou eu o seu pior tormento. – A saudade continuava serena, impassível, ainda com aquele sorriso no rosto, e tinha a expressão de uma criança, embora seu corpo agora parecesse pertencer a um idoso.
Lili lembrou-se das noites que chorou, com o rosto colado no piso laminado do quarto, até o cansaço ser maior que a dor, lembrou-se de todas as manhãs que acordou sozinha na cama e ouviu o som do chuveiro ligado (ele sempre despertava antes e jamais a acordava), lembrou-se do lugar vazio na mesa do café da manhã e de todas as vezes em que ele preparou para ela deliciosas rabanadas para o desjejum. De repente, o sentimento da noite anterior voltou com mais intensidade e ela estava tomada de ódio. Proferiu os nomes mais horríveis que vieram em sua mente e, insana, avançou com as mãos fechadas em punho, prontas para golpear a saudade. Mas se deteve.
   Novamente, a saudade tinha a forma de uma criança e seus olhos emanavam tristeza e amor. Misteriosamente, o ódio de Lili deu lugar a um sentimento novo, parecido com gratidão. Ela começou a entender que não era certo odiar a saudade, percebeu que não queria feri-la, tão pouco fazê-la desaparecer. A saudade era uma dor necessária e urgente. Sem ela, haveria apenas o vazio. E nada no mundo poderia ser pior do que o vazio, pensou Lili. Finalmente, abriu os braços e acalentou a saudade. Ela era a sua eterna companheira. A dor mais feliz que poderia sentir. E suas lágrimas misturaram-se ao seu riso.  


Por Vanessa Olivier

Nenhum comentário:

Postar um comentário