terça-feira, 17 de maio de 2016

Na Contra-mão


Eles não estavam querendo conversa. O mais velho buscava em vão no azul do céu algum sinal, só não se sabia de quê. Flávio saiu ressabiado, ainda expiando por cima dos ombros, um olhar meio de esquina, aquele que não quer ser percebido, mas tem esperança de alcançar algo. Dobrou a quadra, temeroso de que alguém o visse caminhando na contra-mão de seus valores, sem lenço, documento e razão. Pensou em voltar, quem sabe os irmãos ainda poderiam mudar de ideia, antes que ele se afundasse de vez na lama do degredo. Mas era tarde, sua vida agora valia não mais do que alguns centavos, e o serviço sujo tinha hora para terminar.
O caminho parecia demasiado pequeno. Tentou encurtar os passos para ganhar tempo e pensar no que fazer. Suas mãos estavam frias, apesar do calor de quase quarenta graus. O frio vinha de sua alma, já que ele não mais sabia se ainda a tinha. De longe viu Dalila, brincando com as tranças de aplique, um sorriso maroto e, ao mesmo tempo, ingênuo, olhos de quem já conheceu a face mais podre de todo o submundo, mas que ainda acredita que a vida pode ter um tom rosa, da cor do vestido que ressalta suas curvas fortes de macho-fêmea.
Ela percebeu que Flávio a olhava, mas toda sua sensibilidade de alma feminina não poderia ser capaz de adivinhar o que se escondia naquele olhar. Retribuiu-o sem ao menos saber que feição teria seus olhos cor de avelã, sustentando longos cílios negros postiços, e um tom de azul ofuscante nas pálpebras. Mas Flávio desviou o olhar e sentiu um suor fino pingar de sua fronte. Dalila deu de ombros, e voltou a atenção aos companheiros que vislumbravam nela um prazer o qual ainda poderia satisfazê-los na mediocridade de uma vida sem valias.
Ele subiu a rampa de solo batido, sentindo que o fim da linha se aproximava. Acendeu um baseado para consumir suas entranhas e calar o nervosismo que já atingia seus órgãos vitais. Esperou recostado à parede suja, cheirando a fumo pesado de quem já se aventurou por espaços ilusórios, encontrando o céu e o inferno e acabando num chão frio, leito dos covardes e de quem não tem mais nada. Lembrou-se do tempo em que acreditava poder levar a vida, sem perceber que a vida o levava, nem sempre para onde queria ir. Acabou perdendo de vez a direção, e sem oferecer resistência, chegou ao mais baixo degrau de sua escala.
Flávio continuava aspirando e respirando a fumaça de poluentes compulsivamente, até que sentiu os lábios dormentes e o coração cavalgar num ritmo mais lento, no compasso de sua força, aquela consciente. Ouviu passos arrastados, mas não atinou os sentidos para o que estava por vir. Sua força inconsciente tentava reagir, mas defrontava-se com o medo, algo tão forte que ganha corpo e corrompe mais do que o dinheiro. Sentiu uma mão pesada segurar firme seu ombro esquerdo e percebeu que precisava reagir, o mais rápido possível.
- Desembucha - disse o brutamonte de nariz grande e olhos pequenos, que mal se percebe que estão abertos, no ávido desejo de saber quem havia dedurado seu plano de fuga para poder pedir a cabeça do “alcaguete” traidor.
Flávio apagou o cigarro na parede e não ousou desencostar dela, pois sentia as pernas frágeis como uma pena solta ao vento. Lembrou-se da promessa dos irmãos, da lâmina que riscaria sua garganta no escuro de uma cela fria, do sorriso de Dalila que poderia até apaziguar os horrores da enorme jaula, do dia em que foi pego com 50 quilos de maconha, das lágrimas de sua mãe, da promessa que havia feito ao pai falecido, que teve a vida a prêmio por um grupo de “alcaguetes”, da noite confusa na qual quase não se via nada, a não ser homens fardados desferindo golpes de cacetetes contra um grupo feroz de pessoas condenadas na vida e na morte após uma tentativa frustrada de fuga, e voltou o olhar ao gigante de olhos quase invisíveis, que já demonstrava falta de paciência.
- Como é que é malandro? Foi o traveco ou não? - falou o brutamonte, expelindo salivas ao pronunciar as palavras com um timbre grave, quase igual ao ronco de um estômago faminto.
E, novamente, a ameaça dos irmãos “alcaguetes” gritou nos ouvidos de Flávio, o olhar despreocupado e inofensivo de Dalila, com suas tranças de aplique, invadiu suas retinas, assim como a noite confusa que começou na enfermaria quando um grupo de presidiários chegou escoltado para receber cuidados médicos, entre eles, os irmãos e Dalila. Flávio, auxiliar de enfermagem e detento do presídio “Vale das Pedras”, surpreendeu uma conversa entre os irmãos e um tira, na qual um plano de fuga estava sendo dedurado, em troca de pequenos favores. E já sabendo que a bomba poderia estourar na sua mão, tentou fazer-se de rogado, mas foi logo descoberto e incumbido da missão de acusar alguém que incomodava, simplesmente porque tinha alegria e não devia nada a ninguém. 
 ­­- Nunca vou ser cagueta - a frase saiu sem querer, pois Flávio repetiu em pensamento explicito o que havia prometido ao pai morto a tiros nos becos do submundo.
- Como é que é? - os olhinhos do brutamonte se arregalaram tanto que até deu para ver a cor que tinham.
- Não ... é, espere - Flávio perdeu o ar, e imaginou o gosto do sangue escorrendo por sua garganta e a vida o levando para onde sempre temeu. O medo criava celas imensas que afugentavam sua força inconsciente e o único valor que se orgulhava de ter em sua vida de misérias. Para ele, entregar alguém era terrível e pior era acusar um inocente, ainda mais Dalila, que não se furtava de distribuir sorrisos mesmo sendo os seus dias de pura dor e solidão. Se falasse a verdade, ou se fizesse de surdo e mudo morreria de uma vez só, mas se mentisse, a morte poderia vir lentamente, todos os dias um pouco, até que a última gota de vida se esvaísse de sua vil carcaça.
 E sem pensar mais em nada, a resposta veio suada, carregada de uma vida, um ser humano todo, tudo o que ainda restava a Flávio e que seus caminhos torpes lutavam para roubá-lo e levá-lo ao lugar no qual nunca quis estar: no lamaçal de seus valores.
- Não foi - a voz saiu rasgada, como uma tosse de cachorro louco.
- Então quem foi? - desta vez, inúmeras partículas de saliva saíram junto com a voz de ronco de estômago do gigante de olhinhos minúsculos e foram encontrar o rosto pávido do ajudante de enfermagem.
- Não sou cagueta - disse Flávio, sentindo as pernas úmidas com a urina que escorria incontrolavelmente por dentro da calça jeans, mas, que, contrariamente, demonstrava uma incrível coragem diante de um mundo de brutamontes covardes e de quem da vida já não tem mais nada.  

Por Vanessa Olivier

Nenhum comentário:

Postar um comentário