terça-feira, 28 de maio de 2019

Marcas da vida


Um dia, sentada em frente ao espelho, percebeu que uma linha fina se formava entre suas sobrancelhas delineadas todas as vezes em que ela franzia a testa. Notou que a linha ficava um pouco mais suave quando ela relaxava o rosto. Era a primeira ruga que havia observado em seu semblante jovem e plácido. Mas, a partir daquele momento, sua serenidade se desviou numa curva que não deixa marcas visíveis.
Foi naquele dia que ela descobriu algo evidente, porém, inimaginável. Se aquela expressão marcava seu rosto com uma linha fina visível, que se tornaria cada vez mais profunda com o passar do tempo, deixar de fazê-la poderia ser a chave para retardar ou até mesmo evitar uma ruga profunda. Então ela passou a se policiar para não mais franzir a testa até que aquele comportamento incomum se tornou um hábito.
Toda vez que ela se espantava com algo, se irritava ou quando tentava enxergar por entre a luz radiante do sol, simplesmente respirava fundo e, calmamente, balbuciava: “O que?”. No caso da luz do sol, apenas evitava que seus olhos fossem ao encontro dela. E assim, a ausência dessa expressão em seu rosto deu lugar para outras, pois ela percebeu que poderia evitar mais sinais na pele caso deixasse de sorrir, chorar, gargalhar, gritar e assim por diante. “É tão simples evitar as rugas”, pensava ela.
Mas ao longo dos seus dias, acontecimentos inevitáveis tornavam seu propósito cada vez mais difícil. Era praticamente impossível não chorar toda vez que seu coração era partido por um homem, ou não rir quando saía para se divertir com as amigas, ou não se irritar ou se estressar quando alguma coisa dava errado no trabalho. Manter o semblante sereno estava ficando cada vez mais difícil diante dos acontecimentos corriqueiros do dia a dia. Com isso, outros sinais indesejáveis começavam a ser notados em seu belo rosto.
Diante do espelho, ela analisava todas as linhas que se formavam com cada expressão. Uma espécie de pânico começou a se formar bem no meio de seu estômago, como um redemoinho de emoções pronto para sugá-la para dentro de si mesma. As lágrimas explodiam descontroladas por sua face e, na sua mórbida insensatez, tomou uma decisão perigosa. A partir daquele dia, não mais sairia com as amigas, não conheceria outros homens, assistiria apenas a filmes que não a fizessem chorar ou gargalhar, deixaria de tomar sol, e mudaria de emprego, algo que fosse mais tranquilo, mesmo que pagasse infinitamente menos.
Assim foi. Com o passar do tempo, os convites das amigas se findaram, o trabalho passou a ser uma rotina demasiadamente tediosa, seus dias de flerte ficaram para trás e, o sol, guardado por trás das cortinas de sua casa. Finalmente, ela seguia firme no seu propósito, mantendo um rosto sempre sereno, com pouquíssimas linhas de expressão.
Anos depois, em frente ao espelho, notou que as linhas em seu rosto continuavam muito suaves e se alegrou muito com isso, mas sem deixar que uma expressão de felicidade atravessasse seu semblante. Ela estava conseguindo atingir seu objetivo, não aparentava, nem longe, a idade que tinha. Seu rosto continuava bonito, sua pele, lisa. Entretanto, depois de alguns longos minutos observando a própria aparência, percebeu algo novo que quase roubou o ar de seus pulmões, deixando-a perplexa.
Diante do espelho estava uma mulher de 59 anos, cabelos escuros e sedosos que caiam ondulados por seus ombros eretos, pele clara sem sinais de rugas mais proeminentes, apenas algumas linhas finíssimas que até lhe davam um ar ainda mais elegante, lábios levemente cheios, hidratados e roseados, contornos ainda suaves e surpreendentemente sólidos. Era, sem dúvida, uma bela mulher. Mas o que a espantou foi algo tão gritante e que, de forma incompreensiva, havia passado batido por suas análises anteriores.
Os olhos dela, redondos, delineados por um lápis fino e adornados por longos e curvados cílios, não exibiam olheiras por baixo deles, tão pouco, bolsas, apenas alguns traços imperceptíveis dos anos passados. A cor das íris eram castanhas, as pálpebras continuavam rijas e aparentes, mas não foi nada disso que havia chamado sua atenção. Algo neles a encheu de pavor e tudo o que havia feito desde então para evitar as temidas rugas parecia desmoronar diante de si. Um mundo desprovido de sensações, uma vida que não foi vivida.
O rosto bonito e jovem que lhe encarava de volta no espelho não era dela. Aqueles não eram seus olhos, a mulher diante de si não era ela. Sem se dar conta, ela havia se transformado em um ser desprovido de humanidade, era como um andrógeno ou um alienígena. Seus olhos castanhos não tinham brilho, eram como dois botões irrelevantes de uma blusa. Sua pele, embora ainda um pouco fresca, não havia luminosidade, era como a borracha usada para construir uma boneca barata. Ela era uma imitação patética de um ser humano.
De repente, o redemoinho, que quase rasgou seu estômago anos atrás quando decidiu evitar qualquer emoção mais forte capaz de transparecer em seu rosto, tornou a fervilhar dentro dela. Era como se tudo o que deixou de viver, cada lágrima, cada riso, cada suspiro, cada grito ganhasse vida própria e se aboletasse na boca de seu estômago. Naquele momento, ela teve certeza absoluta de que iria explodir. Mas não explodiu.
Em vez disso, perdeu os sentidos e seu corpo forte caiu amolecido sobre o piso frio. Quando recobrou a consciência, levantou-se com dificuldade sentindo que as pernas pareciam ter o dobro do peso de antes. Sentou-se novamente em sua banqueta, em frente ao espelho, e quando levantou os olhos para encarar seu reflexo, ficou ainda mais estarrecida. O rosto que lhe encarava de volta realmente pertencia a uma mulher de 59 anos, e cada ano vivido estava estampado, de alguma forma, em sua pele, agora marcada.
Atônita, compreendeu imediatamente o que havia acontecido. E estranhamente, de algum modo, pareceu ficar satisfeita. Ela, então, permitiu-se a sorrir. A partir daquele momento decidiu que nunca mais se privaria. Doesse a quem doer!

Vanessa Olivier
   


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