sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Amanheceu

Ele não está me ouvindo. As palavras jorram de minha boca como uma avalanche de cacos, talhos de madeira, poeira e restos de comida. São os entulhos abarrotados de minha alma que estão sendo lançados para lugar nenhum. Por mais que eu grite e me esvaia em lágrimas e soluços misturados a um confuso dialeto, nada parece abalar sua intolerável autoconfiança. Do alto de sua empáfia, ele me olha impassível. A boca, às vezes, se mexe sutilmente em uma menção de quem anseia calar o próprio silêncio, mas logo os lábios finos se apertam, selando-se a frio.
Miro fundo naqueles olhos cor de caramelo queimado à procura de um vestígio de amor, algo que não me deixe na sombra de meus próprios tormentos. Sinto deslizar uma lágrima pelo canto de meu olho esquerdo e deixo que ela passeie pelo meu rosto até se perder na curva de meu pescoço. Eu já não falo mais, apenas o encaro com medo do que possam revelar seus olhos de fogo. Sem querer enxergar, penso ter visto reluzir uma sombra de piedade.
Mas nada disso está funcionando, eu me encontro perdida demais para entender os sinais, preciso de algo mais concreto. Espero, até que adormeço no aconchego solitário de meu sofá de três lugares. Na sala, apenas o silêncio de minha própria respiração.
Acordo em um sobressalto. No ambiente mal iluminado posso avistar um pequeno pedaço de papel em cima da mesa de centro. Esfrego os olhos embaralhados e estendo as mãos para alcançar o bilhete. A pouca luz atrapalha a leitura e preciso me levantar para tocar o interruptor. Sinto o corpo pesado, fraco, vitimizado pela recente sessão de quimioterapia. Quando a sala se ilumina, tenho medo de encarar o amontoado de letras no papel. Aliás, medo é meu companheiro desde o descobrimento do nódulo em meio seio esquerdo.
Procuro um assento mais próximo para repousar meu esgotamento. O assalto do retumbar de meu coração quase me deixa sem fôlego. Eu sei o que preciso fazer, mas o pavor do futuro que virá depois que eu ler o bilhete parece me paralisar. Não sei por quanto tempo fico sentada, com o papel sobre o colo, sem poder descobrir a verdade.
 Mas eu preciso encarar, como fiz quando abri o envelope que trazia o resultado da biopsia sobre o tipo do tumor instalado em meu corpo. No dia em que me submeti à cirurgia para retirar um de meios seios e, com ele, toda minha feminilidade. Quando finalmente consegui olhar no espelho e ver o reflexo de meu corpo nu e dolorosamente mutilado. Ao fazer a primeira sessão de quimioterapia e sentir o mundo todo rodar. No momento em que agarrei firme o aparelho de barbear, que ele sempre esquecia sob a bancada da pia do meu banheiro, e o manuseei sobre meu próprio couro cabeludo, acabando com as evidências do que já tinha sido uma longa, farta e bela cabeleira loira.
Depois de pensar nisso tudo, finalmente meus olhos encontram a letra de forma no papel já entre meus dedos frios. Lá fora, a manhã se levanta iluminando, aos poucos, as ruas de meu bairro, e clareando as frestas da persiana que cobre a janela. Depois de ler e reler dezenas de vezes aquele bilhete, aos poucos meu coração volta ao ritmo normal. Solto o ar preso de meus pulmões e, no momento em que fecho os olhos, as lágrimas que já queimam dentro de minhas retinas caiem frescas sobre as maçãs de meu rosto. Estranhamente, não sinto dor. Aquele golpe, aparentemente cruel, não me desestabiliza como eu havia imaginado.

De repente percebo que todo aquele pânico tinha sido em vão. Apesar de difícil e dura, me espanto ao perceber que consigo absorver a realidade. Amasso o bilhete, jogo-o no lixo, enxugo o rosto e vou preparar o café da manhã. A vida continua.

Por Vanessa Olivier

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