Ele
não está me ouvindo. As palavras jorram de minha boca como uma avalanche de
cacos, talhos de madeira, poeira e restos de comida. São os entulhos
abarrotados de minha alma que estão sendo lançados para lugar nenhum. Por mais
que eu grite e me esvaia em lágrimas e soluços misturados a um confuso dialeto,
nada parece abalar sua intolerável autoconfiança. Do alto de sua empáfia, ele
me olha impassível. A boca, às vezes, se mexe sutilmente em uma menção de quem
anseia calar o próprio silêncio, mas logo os lábios finos se apertam,
selando-se a frio.
Miro
fundo naqueles olhos cor de caramelo queimado à procura de um vestígio de amor,
algo que não me deixe na sombra de meus próprios tormentos. Sinto deslizar uma
lágrima pelo canto de meu olho esquerdo e deixo que ela passeie pelo meu rosto
até se perder na curva de meu pescoço. Eu já não falo mais, apenas o encaro com
medo do que possam revelar seus olhos de fogo. Sem querer enxergar, penso ter
visto reluzir uma sombra de piedade.
Mas
nada disso está funcionando, eu me encontro perdida demais para entender os
sinais, preciso de algo mais concreto. Espero, até que adormeço no aconchego
solitário de meu sofá de três lugares. Na sala, apenas o silêncio de minha
própria respiração.
Acordo
em um sobressalto. No ambiente mal iluminado posso avistar um pequeno pedaço de
papel em cima da mesa de centro. Esfrego os olhos embaralhados e estendo as
mãos para alcançar o bilhete. A pouca luz atrapalha a leitura e preciso me
levantar para tocar o interruptor. Sinto o corpo pesado, fraco, vitimizado pela
recente sessão de quimioterapia. Quando a sala se ilumina, tenho medo de encarar
o amontoado de letras no papel. Aliás, medo é meu companheiro desde o descobrimento
do nódulo em meio seio esquerdo.
Procuro
um assento mais próximo para repousar meu esgotamento. O assalto do retumbar de
meu coração quase me deixa sem fôlego. Eu sei o que preciso fazer, mas o pavor
do futuro que virá depois que eu ler o bilhete parece me paralisar. Não sei por
quanto tempo fico sentada, com o papel sobre o colo, sem poder descobrir a
verdade.
Mas eu preciso encarar, como fiz quando abri o
envelope que trazia o resultado da biopsia sobre o tipo do tumor instalado em
meu corpo. No dia em que me submeti à cirurgia para retirar um de meios seios
e, com ele, toda minha feminilidade. Quando finalmente consegui olhar no
espelho e ver o reflexo de meu corpo nu e dolorosamente mutilado. Ao fazer a primeira
sessão de quimioterapia e sentir o mundo todo rodar. No momento em que agarrei
firme o aparelho de barbear, que ele sempre esquecia sob a bancada da pia do
meu banheiro, e o manuseei sobre meu próprio couro cabeludo, acabando com as
evidências do que já tinha sido uma longa, farta e bela cabeleira loira.

De
repente percebo que todo aquele pânico tinha sido em vão. Apesar de difícil e
dura, me espanto ao perceber que consigo absorver a realidade. Amasso o
bilhete, jogo-o no lixo, enxugo o rosto e vou preparar o café da manhã. A vida
continua.
Por Vanessa Olivier
Por Vanessa Olivier
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