terça-feira, 28 de junho de 2016

O amor no ódio




Estavam os dez, um ao lado do outro. Esperavam impacientes para receber a missão escolhida pelo Senhor. Eram querubins, cheios de energia, ansiedade e um pouco de temor. Enquanto a ordem não vinha, tentavam imaginar quais os tipos de mortais que iriam amparar. E ainda que não soubessem, já podiam sentir um imenso amor.
Era chegada a hora. Um por um foi conhecendo seu humano escolhido e se emocionando. No fim da escolha, todos estavam contentes, exceto um deles. Quando o Senhor se retirou, um murmúrio de vozes e risinhos encheu o ambiente de alegria. Porém, entre as vozes eufóricas e jubilosas, soou triste a voz de Ireléu.
Assustados, todos o olharam. O pequeno querubim, de olhos grandes e expressivos, cabelos encaracolados e dentes salientes, desabafou. Triste, não compreendia os motivos do Senhor ao lhe dar o pior dos humanos para que protegesse. Sentiu-se inferior em relação aos outros querubins, os quais ganharam mortais de alma boa. Todos festejavam ao descobrir que foram contemplados com crianças de rua, idosos solitários, mulheres desprezadas e homens injustiçados, que pareciam tão carentes e necessitados de ajuda. E, no entanto, a maçã podre ficou para Ireléu, “isso não é justo”, pensava ele.
Seu escolhido era um homem cruel, que matava, furtava, humilhava, maltratava, enganava seus irmãos, e ainda cometia o pior dos pecados: não crer em Deus. Revoltado, Ireléu tentou recorrer com o Senhor que, atencioso, não dizia nada. Quando o querubim terminou de expressar o que estava sentindo, relatando toda sua incompreensão e desilusão, o Senhor sorriu e disse:
- Todos são meus filhos. Agora vá, e cumpra tua missão. - Arrependido pela tentativa e lamentando sua falta de sorte, Ireléu obedeceu.
Os querubins se despediam e desejavam boa sorte uns aos outros. Antes de ir, Ireléu olhou demoradamente para seus colegas e, desconsolado, baixou os olhos, envergonhado de si. Um deles, percebendo seu desgosto, foi ter com ele. Rafael, como se chamava o querubim, acariciou os cabelos encaracolados de Ireléu e disse, com ternura nos olhos:
- Devias estar feliz. Com o tempo irás perceber o presente que ganhaste. - O pequeno querubim ergueu os grandes olhos e disse, sem compreender as palavras de Rafael.
- Diz isso porque ganhaste uma criança de rua, triste, faminta e carente para proteger. Pois eu, ao contrário de ti, ganhei uma alma perdida, a qual não deveria merecer piedade, pois é cruel e descrente. Nunca poderei sentir amor por tal criatura. - Rafael deu um beijo em sua testa e o desejou boa sorte.
O sol ardia altivo no alto do céu, clareando e abrasando a terra quente. O cheiro de leite fresco, capim molhado e esterco, o ruído de máquinas de fabricar queijo, mugido de bovinos e cacarejar de galinhas enriqueciam todo o cenário e anunciavam o inesgotável trabalho no campo. O querubim estava fascinado com o que via. A natureza dava vivas de alegria, as árvores respiravam felizes com seus frutos maduros e saudáveis, os rios desciam livremente com suas águas translúcidas e o vento caminhava sem pressa, com uma agradável sensação de liberdade. Tudo era paz e harmonia.
Sentado em uma poltrona, impregnando-se de um charuto caro e fedorento, estava o mortal. Era um homem de 56 anos, braços fortes, cabelos e bigode grisalhos, uma saliência protuberante no abdômen, pele escura pelo sol e olhos firmes. Usava botas e cinto de couro de jacaré, camisa de manga curta e calça jeans. Ireléu reparou que o homem possuía uma enorme cicatriz no braço direito. Analisou seus olhos e não conseguiu descobrir o que diziam. Eram olhos silenciosos, os quais camuflavam os segredos da alma. Seria difícil conhecê-lo profundamente, lamentou o querubim.
      Coronel Batista, assim chamava o protegido de Ireléu. Possuía um verdadeiro império de produção de leite e queijo. Toda a riqueza que conseguiu acumular em sua vida, não havia sido por meios legais. E tudo que conseguiu atrair foi ódio, medo e dor. Tinha uma enorme e inigualável capacidade de causar o sofrimento alheio. Já havia mandado executar milhares de sem-terras que invadiram suas propriedades abandonadas à procura de abrigo e comida para tentar sobreviver em um mundo de desigualdades. Havia torturado e humilhado inúmeros empregados, prejudicado muitas famílias, e praguejado diversos mendigos. Usava as mulheres como objeto fungível, ria dos miseráveis e blasfemava contra Deus. Era um homem sem piedade e amor à vida. Todos que o conheciam diziam que ele tinha o corpo fechado. Foram muitos os que tentaram acabar com sua vida, sem nenhum êxito. Era protegido por seus guardas, mas, sobretudo, acreditavam que era guardado por forças superiores e ocultas. Por fim, quem conhecia sua fama jamais se arriscaria a se intervir em seu caminho. O seu poder esmagava qualquer criatura que tornasse um fardo ou uma ameaça para ele.     
Depois desta longa análise, Ireléu não sabia como deveria agir. “De quê devo protegê-lo e como?”, perguntava-se confuso. Antes de tudo, se lembrou que precisava sentir amor pelo seu escolhido. O grande amor que lhe daria os poderes para enfrentar tudo e todos. Porém, não compreendia a missão que o Senhor o delegou. Como a todos os outros querubins, deveria ele proteger alguém carente, fraco, injustiçado, enfim, vítima das maldades dos humanos. Mas o coronel não parecia fraco, injustiçado, nem carente e, muito menos, vítima da crueldade humana.     
Ainda era um querubim e essa era a primeira missão que recebia. Precisava vencê-la para se tornar serafim. Mas ainda era muito jovem, ingênuo e não conhecia a verdade. Precisava aprender e era aquela missão que o ensinaria os mistérios da vida. Porém, não a compreendia e achava-se incapaz de sentir amor por tal homem desumano. Chorou lágrimas celestiais.
O tempo passava e durante todos os dias Ireléu via seu protegido cometer crueldades e injustiças, sem poder fazer nada, pois não conseguia amá-lo. Mas, em um certo dia, cansado e quase derrotado, sem poder mais conviver com tanta dor, teve um segundo de lucidez. Lembrou-se que o Senhor mandou proteger o coronel, porém, não conseguiu ver nada que o ameaçasse. Aí, então, o querubim pensou: “O Senhor ordenou que eu o protegesse, mas não disse de quê. Como não encontrei alguém ou algo que o ameaçasse, a única ameaça é ele mesmo. Preciso protegê-lo dele mesmo. Mas como farei isso?”, perguntava Ireléu ao Senhor, com os olhos no firmamento. Sem nenhuma resposta, o querubim passou o dia refletindo. Mas ele sabia que antes de tudo deveria amá-lo. Haveria de encontrar uma ponta de humanidade no coração do coronel. Precisava aprender a ler seus olhos, talvez, revelassem algo de bom escondido em sua alma, por medo ou vergonha.
Os dias se passavam, o tempo para cumprir sua missão estava se esgotando e ele nem ao menos conseguia amar seu protegido. O desespero e a vergonha atingiam o pobre querubim. Iria fracassar, como poderia olhar nos olhos do Senhor?, pensava ele.  
Porém, num momento percebeu o quanto havia sido tolo e ingênuo. Ele chorou, e seu pranto foi capaz de lavar sua vergonha e sua tristeza. Percebeu que o coronel era só. Rico, poderoso, mas um pobre solitário. Nenhuma mulher era capaz de amá-lo, pois dele sentiam medo, ódio e nojo. Havia tido um filho, que se perdeu pelo mundo. Também havia sido apaixonado por uma mulher, que o traiu, e acabou sendo morta por ele. E sentido dor, que o levou a cometer seu primeiro homicídio. Havia chorado, sofrido e a dor devorado de vez a única ponta de amor que trazia no coração. Por fim, o coronel deveria ser infeliz. 
De repente, o querubim começou a sentir pena de seu protegido e olhá-lo com olhos brandos. Ireléu começou a analisar atentamente o homem diante de si, sentado em sua poltrona, fumando vagarosamente um charuto, seu único companheiro. A noite era imensa. A fazenda era ainda mais bela iluminada por aquela lua divina, que quase era capaz de cegar os olhos de quem a apreciava. O silêncio na imensa sala do coronel caia pesado e triste. E seus olhos tinham um brilho oculto, misturando dor e alegria. Olhava às suas terras e à sua riqueza com orgulho. Porém, via sua solidão com dor e vergonha. Talvez, raiva de si e arrependimento. Ódio da sua incapacidade de amar.
Ireléu se assustou. Finalmente viu que nos olhos do coronel havia vergonha. Um sentimento camuflado a todos e até mesmo a ele durante o dia, mas que com o cair da noite, quando o silêncio reina absoluto, quase chega a sufocá-lo. Sabia que era uma criatura infeliz, e que apesar de todo seu poder e riqueza, não dispunha daquilo que tantas pessoas, as quais mesmo sem ter fortuna e poder como o seu, tinham: Amor. Elas amavam e ele as odiava e, simultaneamente, as invejava. Sabia que poderia ter tudo o que quisesse porque tinha poder. Mas não o amor, simplesmente por ter vergonha. O seu orgulho o dominava e perante aos olhos dos outros queria parecer um homem frio e cruel, com tal poder que faria o amor se sentir fraco e humilhado. Mas, na verdade, ele era o fraco, pois era incapaz de se permitir a amar. E isso o fazia sofrer e ter raiva do mundo. 
Só agora o querubim descobriu que havia ganhado o mesmo tipo de mortal que os outros para proteger. Entendeu que seu escolhido era fraco, carente e vítima das maldades humanas, porque antes de tudo era filho de Deus e sentia dor e vergonha. Queria amar, mas era fraco para vencer o seu orgulho. Solitário, carecia de afeto. E, como se não bastasse, fazia-se vítima de sua própria crueldade, a maldade humana. Ireléu sorriu e começou a sentir um profundo e infinito amor por aquele mortal. Amava-o com tanta intensidade, que o Senhor acabou por lhe dar os poderes para protegê-lo. E, sendo assim, venceu o primeiro obstáculo de sua missão que, sem dúvida alguma, a mais difícil. “Agora será fácil, pois eu o amo”, pensou, satisfeito.


Nos próximos e últimos dias de sua missão, se dedicou em proteger o coronel dele mesmo. Aos poucos, utilizando situações comuns, fez seu protegido enxergar que a vida sem amor é como uma imensa fazenda, mas sem ninguém para preservá-la, cuidar dos animais, fabricar os queijos, fazê-la progredir e acreditar que está viva, perdendo, assim, o sentido do existir. Ireléu aprendeu e ensinou ao seu protegido a verdade. Venceu sua missão e se lembrou das palavras do querubim Rafael: “Com o tempo irás perceber o presente que ganhastes”. Agora ele sabia e agradecia ao Senhor pela missão que havia ganhado. Venceu o mais difícil dos obstáculos. Encontrou o amor no ódio, e entendeu que todos são filhos de Deus.

Por Vanessa Olivier